Thursday, December 29, 2005

Bom ano 2006

Poesias

I

Confira
tudo que
respira
conspira

II

Tudo é vago e muito vário
meu destino não tem siso,
o que eu quero não tem preço
ter um preço é necessário,
e nada disso é preciso

III

Cinco bares,
dez conhaques
atravesso são paulo
dormindo dentro de um táxi

IV

isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além

V

O pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau a pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhodaputa
de fazer chover
em nosso piquenique


Paulo Leminski

Friday, December 23, 2005

Um Carnaval

Vem ao baile vem ao baile
Pelo braço ou pelo nariz
Vem ao baile vem ao baile
E vais ver como te ris

Deixa a tristeza roer
As unhas de desespero
Deixa a verdade e o erro
Deixa tudo vem beber

Vem ao baile das palavras
Que se beijam desenlaçam
Palavras que ficam passam
Como a chuva nas vidraças

Vem ao baile oh tens de vir
E perder-te nos espelhos
Há outros muito mais velhos
Que ainda sabem sorrir

Vem ao baile da loucura
Vem desfazer-te do corpo
E quando caíres de borco
A tua alma é mais pura

Vem ao baile vem ao baile
Pelo chão ou pelo ar
Vem ao baile baile baile
E vais ver o que é bailar.

Alexandre O´Neill

Wednesday, December 14, 2005

Para ouvir

Stay
Michelle Featherstone

Soneto de Separação

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

Vinicius de Moraes

To make a prairie it
takes a clover and a bee.
One clove , and a bee,
And revery.
The revery alone will do,
if bees are few.


Emily Dickinson

Monday, December 12, 2005

Notas para o Diário

deus tem que ser substituído rapidamente por poe-
mas, sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis,
vivos e limpos.

a dor de todas as ruas vazias.

sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste
silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abis-
mo.
sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de aca-
bar comigo mesmo.

a dor de todas as ruas vazias.

mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do
deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e
dos encontros inesperados.
pernoito quase sempre no lado sagrado do meu cora-
ção, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo.

a dor de todas as ruas vazias.

pois bem, mário - o paraíso sabe-se que chega a lis-
boa na fragata do alfeite. basta pôr uma lua nervosa no
cimo do mastro, e mandar arrear o velame.

é isto que é preciso dizer: daqui ninguém sai sem
cadastro.

a dor de todas as ruas vazias.

sujo os olhos com sangue. chove torrencialmente. o
filme acabou. não nos conheceremos nunca.

a dor de todas as ruas vazias.

os poemas adormeceram no desassossego da idade.
fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais
curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me
as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas. ..e
nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida - e
a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.

a dor de todas as ruas vazias.



Al Berto
Horto de Incêndio
Assírio & Alvim
3ª edição - Dezembro 2000

Tuesday, December 06, 2005

Poesia

A vida fora da autografia.
A vida fora da biografia.
A vida fora da caligrafia.
A vida fora da discografia.
A vida fora da etnografia.
A vida fora da fotografia.
A vida fora da geografia.
A vida fora da holografia.
A vida fora da iconografia.
A vida fora da logografia.
A vida fora da monografia.
A vida fora da nomografia.
A vida fora da ortografia.
A vida fora da pornografia.
A vida fora da quirografia.
A vida fora da radiografia.
A vida fora da serigrafia.
A vida fora da telegrafia.
A vida fora da urografia.
A vida fora da videografia.
A vida fora da xilografia.
A vida fora da zoografia.
- A vida inde.


Arnaldo Antunes

Não fosse isso

não fosse isso
e era menos
não fosse tanto
e era quase


Paulo Leminski

A um Ausente

Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enloqueceu, enloquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.



Carlos D. de Andrade

Sunday, December 04, 2005

Há qualquer coisa na esfera dos Silêncios

As palavras que não dizes, mas tocas com os olhos
E as mãos e tudo, meu amor…
Há mistérios contundentes,
Que a tua presença ataca,
Como se ao mínimo revirar de pálpebras
Te escondesses dos ares e dos mares,
Que, de certeza, te atravessam inteiro,
Quando ouves músicas.

E eu gostava de te falar mais vezes,
De te contar as histórias tristes
Das pessoas a desaparecerem do meu colo,
Como que levadas pelas asas de um anjo infernal.
Pudesses tu compreender a dor, que não é a dos livros,
Mas a de ausências, que prolongam tempos
De vozes caladas…para sempre.
E explicar-te que, por vezes, por vezes
Há minutos que são roubados aos espaços de ti,
Como que levados para lá do livre som do teu sorriso…
(Sorris com os olhos, tantas vezes!)
E que se eu corro, não é por não querer ficar mais tempo,
É só porque não sei falar contigo,
Senão no silêncio calmo e saudável
Do teu olhar.


Maria Amaro
Dezembro de 2005

Saturday, December 03, 2005

Thursday, December 01, 2005

Poema para os meus navios

Não sei descrever o caminho das palavras,
volteadas nos mistérios do mundo.
Não sei descobrir as sinas,
antever os princípios, por isso
não vejo a intenção das asas nos mastros do mar,
por cima das ilhas.
(Aposto que os navios morreram no mar,
aposto que os navios lutaram diante
da raiva das ostras num abrir e fechar de conchas,
intercalado, por zumbidos tenebrosos
de batimentos de cascas;
deixaram-se levar no ondear das
águas como quem foge aos bocados,)
E eu não dei por nada.
Não dei por eles.

Por isso,
Já não sei dobrar os versos das palavras,
escrever-lhes na contracapa os nomes,
silogismos e acentos.
Esqueci-me do golpear dos versos, das mãos cheias
da gente, dos rostos nas fotografias.
Têm-me tirado mãos. Têm saído da minha vida,
Aos bocados, as mãos, os abraços, os colos e
as palmas.
Aposto as estrelas nas margens das folhas,
os papeis dispersos na linha da frente,
entrelaçados nas luzes,
nas sombras da malabarista, palhaça, caída em rede
falsa em cima do rombo no casco, dito coração,
das pessoas, do meu.

dou a volta à metafísica numa finta descarada,
vou por cima, vou por baixo, dobro as mãos,
subo as escadas, à procura de ( me )ver
nos meus navios; ganhar às ostras, terrivelmente
mecânicas, abrindo e fechando as conchas
num batimento infernal de cascas.
Mas
Perco as sombras, dobro os passos, apresso e escrevo:
Esta manhã, aqui, o mar
E os ecos dele rasgando a calçada da avenida,
Esta manhã, aqui, o mar
E a gente de há anos correndo nos mastros,
dos meus navios.
A minha vida toda
Já não é inteira.

E eles também não.

Maria Amaro

Wednesday, November 30, 2005

Poema em linha recta - FERNANDO PESSOA

Nunca conhecí quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasito,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.



Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe —todos eles príncipes— na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não uni pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ô príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que hà gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos —mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Acorda-me, Fala-me

« - Por que me escreves? Que inspiração alheia
te suja os dedos de versos, se os teu lábios
não pronunciaram nunca as palavras que esperei,
quando, em tardes de vento, te olhava em
silêncio? Por que interrompes a estrofe no meu nome,
a flor obscura de uma primavera que não
chegou? Deixa-me!, entre
as copas geométricas de um ritmo vegetal,
respirando na efémera duração de vozes que não ouço;
e sob um breve bater de folhas nos arbustos
perenes que o fumo da madrugada escurece: sombra
separada da própria sombra, e eco já vago
de um canto de pássaro morto! E não deixes que
a minha queixa se dissipe num rumor de águas
estagnadas - charcos da chuva sedentária do outono,
lagoas baças de um choro matinal...» Desperdícios
de vida num fundo amargo de memória.


Nuno Júdice

Um Fado, Palavras Minhas

Palavras que disseste e já não dizes,
palavras como um sol que me queimava,
olhos loucos de um vento que soprava
em olhos que eram meus, e mais felizes.

Palavras que disseste e que diziam
segredos que eram lentas madrugadas,
promessas imperfeitas, murmuradas
enquanto os nossos beijos permitiam.

Palavras que dizias, sem sentido,
sem as quereres, mas só porque eram elas
que traziam a calma das estrelas
à noite que assomava ao meu ouvido...

Palavras que não dizes, nem são tuas,
que morreram, que em ti já não existem
- que são minhas, só minhas, pois persistem
na memória que arrasto pelas ruas.


Pedro Tamen

Com a tua letra

Porque eu amo-te, quer dizer, estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.

Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra.


Fernando Assis Pacheco

Necrológio dos desiludidos do amor

Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.

Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.
Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas os veremos
seja no claro céu ou no turvo inferno.

Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia...

Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados completamente
(paixões de primeira e de segunda classe).

Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho
enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles.


Carlos D. Andrade

Fernando Pessoa

A Lua (dizem os ingleses),
É feita de queijo verde.
Por mais que pense mil vezes
Sempre uma idéia se perde.

E era essa, era, era essa,
Que haveria de salvar
Minha alma da dor da pressa
De... não sei se é desejar.

Sim, todos os meus desejos
São de estar sentir pensando...
A Lua (dizem os ingleses)
É azul de quando em quando.

Saturday, November 26, 2005

Eu, Etiqueta

Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de baptismo ou de cartório,
um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camisola, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
Que nunca experimentei
Mas são comunicados a meus pés.
Meu ténis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem — anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.

Estou, estou na moda.
É doce estar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registadas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso dos outros, tão mim-mesmo,
ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes
Da sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio,
Ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente).
E nisto me comprazo, tiro glória
de minha anulação.
Não sou — vê lá — anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum a compromete.

Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas idiossincrasias tão pessoais,
tão minhas que no rosto se espelhavam,
e cada gesto, cada olhar,
cada vinco da roupa
resumia uma estética?
Hoje sou costurado, sou tecido,
sou gravado de forma universal,
saio da estamparia, não de casa,
da vitrina me tiram, recolocam,
objecto pulsante mas objecto
que se oferece como signo de outros
objectos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome rectifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente."

Carlos D. de Andrade

Thursday, November 24, 2005

Poema-Orelha

Esta é a orelha do livro
por onde o poeta escuta
se delem falam mal
ou se o amam.
Uma orelha ou uma boca
sequiosa de palavras?
São oito livros velhos
e mais um livro novo
de um poeta ainda mais velho
que a vida viveu
e contudo provoca
a viver sempre e nunca.
Oito livros que o tempo
empurrou para longe
de mim
mais um livro sem tempo
em que o poeta se contempla
e se diz boa-tarde
(ensaio de bom-noite,
variante de bom-dia,
que tudo é o vasto dia
em seus compartimentos
nem sempre respiráveis
e todos habitados
enfim.)
Não me leias se buscas
flamante novidade
ou sopro de Camões.
Aquilo que revelo
e o mais que segue oculto
em vítreos alçapões
são notícias humanas,
simples estar-no-mundo,
e brincos de palavra,
um não-estar-estando,
mas que tal jeito urdidos
o jogo e a confissão
que nem ditongo eu mesmo
o vivido e o inventado.
Tudo vivido? Nada.
Nada vivido? Tudo.
A orelha pouco explica
de cuidados terrenos;
e a poesia mais rica
é um sinal de menos.

Carlos D. de Andrade

Sunday, November 13, 2005

ESQUECIMENTO

Quando eu morrer,
Sem o cansaço inútil da jornada
- Porque nunca senti -
Sem o manto sublime da amargura
- Porque nunca chorei -
Sem a réstia de fogo da alegria
- Porque nunca me ri -
Aqueles que me odiaram,
Os poucos que me acolheram
E os muitos que nunca vi,
Hão-de chorar por convenção
Ou sorrir por teimosia.
Mas nunca mais ninguém se lembrará
Do pobre que nunca riu
Nem chorou
Nem sentiu.

jOSÉ Carlos Ary dos Santos

Wednesday, November 09, 2005

Tuesday, November 08, 2005

Ao Volante

Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
me parece, ou me forço um pouco para que pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão parar mas seguir?

Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegado a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência,
Sempre , sempre, sempre
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...

Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sobre mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo!
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestavam, ai de mim, eu próprio sou!

À esquerda o caserbe - sim, o casebre - à beira da estrada.
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado,
Que só posso conduzir se nele estiver fechado
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.

Álvaro de Campos

Saturday, November 05, 2005

A arte de ser feliz

Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.


Cecília Meireles

Pergunta-me

Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer



Mia Couto

Sunday, October 23, 2005

As grades

Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de cascarada e de mentira
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo de ameaça



Sophia de M. Breynner

E tudo era possível

Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer

Ruy Belo

Thursday, September 22, 2005

Não sei como dizer-te que a minha voz te procura
E a atenção começa a florir, quando sucede a noite
Esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
Se enchem de um brilho precioso
E estremeces como um pensamento chegado. Quando,
Iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
Pelo pressentir de um tempo distante,
E na terra crescida os homens entoam a vindima
- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
Ao lado do espaço
E o coração é uma semente inventada
Em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
Tu arrebatas os caminhos da minha solidão
Como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
Os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
Correr do espaço -
E penso que vou dizer algo cheio de razão,
Mas quando a sombra cai da curva sôfrega
Dos meus lábios, sinto que me faltam
Um girassol, uma pedra, uma ave - qualquer coisa extraordinária.

Porque não sei como dizer-te sem milagres
Que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.



Herberto Hélder

Thursday, September 01, 2005

Cavalo à solta

Minha laranja amarga e doce
meu poema
feito de gomos de saudade
minha pena
pesada e leve
secreta e pura
minha passagem para o breve breve
instante da loucura.

Minha ousadia
meu galope
minha rédea
meu potro doido
minha chama
minha réstia
de luz intensa
de voz aberta
minha denúncia do que pensa
do que sente a gente certa.

Em ti respiro
em ti eu provo
por ti consigo
esta força que de novo
em ti persigo
em ti percorro
cavalo à solta
pela margem do teu corpo.

Minha alegria
minha amargura
minha coragem de correr contra a ternura.

Por isso digo
canção castigo
amêndoa travo corpo alma amante amigo
por isso canto
por isso digo
alpendre casa cama arca do meu trigo.

Meu desafio
minha aventura
minha coragem de correr contra a ternura.

José Carlos Ary dos Santos

Monday, August 29, 2005

O Ciclista

O homem que pedala, que ped´alma
com o passado a tiracolo,
ao ar vivaz abre as narinas
tem o porvir na pedaleira.

Alexandre O´Neill

Saturday, July 16, 2005

Vestigia Dei

És tu quem perseguimos pelos lábios
e tens em equilíbrio os seres e o tempo
És tu quem está nos começos do mar
e as nossas palavras vão molhar-te os pés
Tu tens na tua mão as rédeas dos caminhos
descem do teu olhar as mais nobres cidades
onde nasceram os primeiros homens
e onde os últimos desejarão talvez morrer


Tu és maior que esta alegria de haver rios
e árvores ou ruas donde serem vistos
Por ti é que aceitamos a manhã
sacrificada aos vidros das janelas
aceitamos por ti o sol ou a neblina
que faz dos candeeiros sentinelas
É para ti que os pensamentos se orientam
e se dirigem os passos transviados
e o vento que nos veste nas esquinas


És sempre como aquele que encontramos
diariamente pela rua fora
e a pouco e pouco vemos onde mora
Só tu é que nos faltas quando reparamos
que os papéis nos vão envelhecendo
e os dias um por um morrendo em nossas mãos
És tu que vens com todos os versos
És tu quem pressentimos na chuva adivinhada
quando os olhos ainda se nos fecham
embora o sono nunca mais seja possível
É tua a face oposta a todas as manhãs
onde o tempo levanta ombros de espuma
que deixam fundas rugas pelas faces


Os céus contam contigo é para teu repouso
a terra combalida e sem caminhos
Ser indecomponível teu corpo foi maior
que vítimas e oblações. Quando tu vens
a solidão cai leve como a flor do lírio
e as aves nos pauis levantam voo
e há orvalho em teus primeiros pés


Não assistisses tu a esta nossa vida
caíssem-nos os gestos ou quebrados ou dispersos
e nenhum rosto decisivo um dia fecharia
todas as palavras com que dissemos os versos.

Ruy Belo

Tuesday, July 05, 2005

Outono

Uma lâmina de ar
Atravessando as portas. Um arco,
Uma flecha cravada no Outono. E a canção
Que fala das pessoas. Do rosto e dos lábios das pessoas.
E um velho marinheiro, grave, rangendo o cachimbo como
Uma amarra. À espera do mar. Esperando o silêncio.
É outono. Uma mulher de botas atravessa-me a tristeza
Quando saio para a rua, molhado como um pássaro.
Vêm de muito longe as minhas palavras, quem sabe se
Da minha revolta última. Ou do teu nome que repito.
Hoje há soldados, eléctricos. Uma parede
Cumprimenta o sol. Procura-se viver.
Vive-se, de resto, em todas as ruas, nos bares e nos cinemas.
Há homens e mulheres que compram o jornal e amam-se
Como se, de repente, não houvesse mais nada senão
A imperiosa ordem de (se) amarem.
Há em mim uma ternura desmedida pelas palavras.
Não há palavras que descrevam a loucura, o medo, os sentidos.
Não há um nome para a tua ausência. Há um muro
Que os meus olhos derrubam. Um estranho vinho
Que a minha boca recusa. É outono
A pouco e pouco despem-se as palavras.

Joaquim Pessoa

Thursday, June 30, 2005

A cidade é um chão de palavras pisadas

A cidade é um chão de palavras pisadas
a palavra criança a palavra segredo.
A cidade é um céu de palavras paradas
a palavra distância e a palavra medo.

A cidade é um saco um pulmão que respira
pela palavra água pela palavra brisa
A cidade é um poro um corpo que transpira
pela palavra sangue pela palavra ira.

A cidade tem praças de palavras abertas
como estátuas mandadas apear.
A cidade tem ruas de palavras desertas
como jardins mandados arrancar.

A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.
A palavra silêncio é uma rosa chá.
Não há céu de palavras que a cidade não cubra
não há rua de sons que a palavra não corra
à procura da sombra de uma luz que não há.

José Carlos Ary dos Santos

Sunday, June 19, 2005

Eu, Etiqueta

"Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de baptismo ou de cartório,
um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camisola, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
Que nunca experimentei
Mas são comunicados a meus pés.
Meu ténis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem — anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.

Estou, estou na moda.
É doce estar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registadas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso dos outros, tão mim-mesmo,
ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes
Da sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio,
Ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente).
E nisto me comprazo, tiro glória
de minha anulação.
Não sou — vê lá — anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum a compromete.

Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas idiossincrasias tão pessoais,
tão minhas que no rosto se espelhavam,
e cada gesto, cada olhar,
cada vinco da roupa
resumia uma estética?
Hoje sou costurado, sou tecido,
sou gravado de forma universal,
saio da estamparia, não de casa,
da vitrina me tiram, recolocam,
objecto pulsante mas objecto
que se oferece como signo de outros
objectos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome rectifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente."

Carlos Drummond de Andrade

Saturday, June 18, 2005

Soneto a Duas Mãos

A mão que me sustenta e eu sustento

é mão capaz das vinte e cinco linhas

e do selado azul de um requerimento

ou doutras diligências comesinhas...





Habituada por secretarias,

esperta, decidiu de um grave acento,

a vírgulas guindou torpes cedilhas

e mastigou papel, seu alimento...





Contraiu calos, revoltou-se às vezes,

contra certos despachos, tão soezes

que até o dedo auricular se ria...





Com dois dedos de aumento se curvava

e logo, altiva, à esquerda se mostrava... Agora?

Estão as duas na poesia...





Abandono Vigiado (1960)

Alexandre O´Neill

25 de Abril

Às Forças Armadas e ao povo de Portugal
"Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade"







Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.





Quase, quase cinqüenta anos

reinaram neste país,

e conta de tantos danos,

de tantos crimes e enganos,

chegava até à raíz.





Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.





Tantos morreram sem ver

o dia do despertar!

Tantos sem poder saber

com que letras escrever,

com que palavras gritar!



Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.





Essa paz de cemitério

toda prisão ou censura.

e o poder feito galdério,

sem limite e sem cautério,

todo embófia e sinecura.





Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.





Esses ricos sem vergonha,

esses pobres sem futuro,

essa emigração medonha,

e a tristeza uma peçonha

envenenando o ar puro.





Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.





Essas guerra de além-mar

gastando as armas e a gente,

esse morrer e matar

sem sinal de se acabar

por política demente.





Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.





Esse perder-se no mundo

o nome de Portugal,

essa amargura sem fundo,

só miséria sem segundo,

só desespero fatal.





Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.





Quase, quase cinquenta anos

durou esta eternidade,

numa sombra de gusanos

e em negócios de ciganos,

entre mentira e maldade.





Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.





Saem tanques para a rua,

sai o povo logo atrás:

estala enfim, altiva e nua,

com força que não recua,

a verdade mais veraz.





Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.


Jorge de Sena

Friday, June 10, 2005

Erros meus, má fortuna, amor ardente

Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa [a] que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!

Luís Vaz de Camões

Saturday, June 04, 2005

Amor Combate

Amor Combate


Meu amor que eu não sei. Amor que eu canto. Amor que eu digo.

Teus braços são a flor do aloendro.

Meu amor por quem parto. Por quem fico. Por quem vivo.

Teus olhos são da cor do sofrimento.



Amor-país.

Quero cantar-te. Como quem diz:



O nosso amor é sangue. É seiva. É sol. É Primavera.

Amor intenso. amor imenso. amor instante.

O nosso amor é uma arma. É uma espera.

O nosso amor é um cavalo alucinante.



O nosso amor é pássaro voando. Mas à toa.

Rasgando o céu azul-coragem de Lisboa.

Amor partindo. Amor sorrindo. Amor doendo.

O nosso amor é como a flor do aloendro.



Deixa-me soltar estas palavras amarradas

para escrever com sangue o nome que inventei.

Romper. Ganhar a voz duma assentada.

Dizer de ti as coisas que eu não sei.

Amor. Amor. Amor. Amor de tudo ou nada.

Amor-verdade. Amor-cidade.

Amor-combate. Amor-abril.

Este amor de liberdade.

Joaquim Pessoa

Wednesday, May 25, 2005

Terram

A minha terra é o lugar onde aterram
E atracam verbos, vindos de todo o Lugar
Quando eu morrer, tirem-me dela,
Doem-me ao mar…
… Que eu vou com ele por onde ele for.

Maria Amaro

Monday, May 23, 2005

APONTAMENTO

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um faso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.
Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?
Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.
Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.
Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.

Álvaro de Campos, 1929

Saturday, May 21, 2005

Zeitgeist

"Os meus contemporâneos falam muito
e dizem: «Então é assim»,
com o ar desenvolto de quem se alimenta
do som da própria voz, quando começam
a explicar longamente as actuais tendências
das artes ou das letras ou das sociedades
a pouco e pouco iguais umas às outras
neste primeiro mundo em que nascemos,
agora que o segundo deixou de existir
e que o terceiro, mais guerra, menos fome,
continua abstracto, em folclore distante.

Parece que está morta a metafísica
e que a verdade adormeceu, sonâmbula,
nos corredores vazios onde, às escuras,
se vão cruzando alguns milhões de frases
dos meus contemporâneos. Todavia,
falam de tudo com o entusiasmo
de quem lança «propostas» decisivas
e percorre as «vertentes» de novos caminhos
para a humanidade, enquanto saboreiam
a cerveja sem álcool, o café
sem cafeína e sobretudo
o amor sem amor, pra conservarem
o equilíbrio físico e mental.

Os meus contemporâneos dizem quase sempre
que não são moralistas, e é por isso
que forçam toda a gente, mesmo quem não quer,
a ser livre, saudável e feliz:
proíbem o tabaco e o açúcar
e se por vezes sofrem, tomam comprimidos
porque a alegria é uma questão de química
e convém tê-la a horas certas, como
o prazer vigiado por preservativos
e outros sempre obrigatórios cintos
de segurança, pra que um dia possam
sentir que morrem cheios de saúde.

Quando contemplo os meus contemporâneos
entre as conversas trendy e os lugares da moda,
«tropeço de ternura», queria ser
pelo menos tão ingénuo como eles,
partilhar cada frémito dos lábios,
a labareda vã das gargalhadas
pela madrugada fora. No entanto,
assedia-me a acédia de ficar
assim, mais preguiçoso do que um Oblomov
à escala portuguesa - ó doce anestesia
a invadir-me o corpo, a libertar-me
desse feitiço a que se chama o «espírito
do tempo» em que vivemos, sob escombros
de um céu desmoronado em mil pequenos cacos
ainda luminosos, virtuais
estrelas que se apagam e acendem
à flor de todos os écrans
que os meus contemporâneos ligam e desligam
cada dia que passa, nunca se esquecendo
de carregar nas teclas necessárias
para a operação save
e assim alcançarem a eternidade."


Fernando Pinto do Amaral
In Às Cegas, Relógio D'Água, Março de 1997.

Thursday, May 19, 2005

Um Homem na Cidade

Agarro a madrugada
como se fosse uma criança,
uma roseira entrelaçada,
uma videira de esperança.
Tal qual o corpo da cidade
que manhã cedo ensaia a dança
de quem, por força da vontade,
de trabalhar nunca se cansa.
Vou pela rua desta lua
que no meu Tejo acendo cedo,
vou por Lisboa, maré nua
que desagua no Rossio.
Eu sou o homem da cidade
que manhã cedo acorda e canta,
e, por amar a liberdade,
com a cidade se levanta.
Vou pela estrada deslumbrada
da lua cheia de Lisboa
até que a lua apaixonada
cresce na vela da canoa.
Sou a gaivota que derrota
tudo o mau tempo no mar alto.
Eu sou o homem que transporta
a maré povo em sobressalto.
E quando agarro a madrugada,
colho a manhã como uma flor
à beira mágoa desfolhada,
um malmequer azul na cor,
o malmequer da liberdade
que bem me quer como ninguém,
o malmequer desta cidade
que me quer bem, que me quer bem.
Nas minhas mãos a madrugada
abriu a flor de Abril também,
a flor sem medo perfumada
com o aroma que o mar tem,
flor de Lisboa bem amada
que mal me quis, que me quer bem.

J.C. Ary dos Santos

É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia

É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora.


Mário Cesariny

Sunday, May 15, 2005

Paço de Milhafre

À beira da água fiz erguer meu Paço
Da Rei-Saudade das distantes milhas:
Meus olhos, minha boca eram as ilhas;
Pranto e cantiga andavam no sargaço.

Atlântido, encontrei no meu regaço
Algas, corais, estranhas maravilhas!
Fiz das gaivotas minhas próprias filhas,
Tive pulmões nas fibras do mormaço.

Enchi enfusas nas salgadas ondas
E oleiro fui que as lágrimas redondas
Por fora fiz de vidro e, dentro, de água.

Os vagalhões da noite me salvavam
E, com partes iguais de sal e mágoa,
Minhas altas janelas se lavavam.

O Paço do Milhafre, Vitorino Nemésio

Porque hoje se celebra o dia desta Região

Saturday, May 14, 2005

Ecce Homo

Desbaratamos deuses, procurando
Um que nos satisfaça ou justifique.
Desbaratamos esperança, imaginando
Uma causa maior que nos explique.

Pensando nos secamos e perdemos
Esta força selvagem e secreta,
Esta semente agreste que trazemos
E gera heróis e homens e poetas.

Pois Deuses somos nós. Deuses do fogo
Malhando-nos a carne, até que em brasa
Nossos sexos furiosos se confundam,

Nossos corpos pensantes se entrelacem
E sangue, raiva, desespero ou asa,
Os filhos que tivermos forem nossos.

Ary dos Santos

Sunday, May 08, 2005

Agir não dura a vida toda porque existe a fadiga ou a delicadeza. Se mais vezes paraste de agir por fadiga ou se mais vezes paraste de agir por delicadeza. Dois homens opostos podes ser.

Gonçalo M. Tavares, "1"

Saturday, May 07, 2005

Sonhei contigo embora nenhum sonho
possa ter habitantes tu, a quem chamo
amor, cada ano pudesse trazer
um pouco mais de convicção a
esta palavra. É verdade o sonho
poderá ter feito com que, nesta
rarefacção de ambos, a tua presença se
impusesse - como se cada gesto
do poema te restituisse um corpo
que sinto ao dizer o teu nome,
confundindo os teus
lábios com o rebordo desta chávena
de café já frio. Então, bebo-o
de um trago o mesmo se pode fazer
ao amor, quando entre mim e ti
se instalou todo este espaço -
terra, água, nuvens, rios e
o lago obscuro do tempo
que o inverno rouba à transparência
da fontes. É isto, porém, que
faz com que a solidão não seja mais
do que um lugar comum saber
que existes, aí, e estar contigo
mesmo que só o silêncio me
responda quando, uma vez mais
te chamo.


Nuno Júdice

Friday, May 06, 2005

No meu país não acontece nada

No meu país não acontece nada
À terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
Às casas com que o frio abre a praça.

Dezembro vibra vidros brande as folhas
A brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
Que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul

Que sobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente tem saúde e assistência cala-se e mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
O único caminho é direito ao sol

No meu país não acontece nada
O corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
O fisco vela e a palavra era para toda a gente

E juntam-se na casa portuguesa
A saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
Da velha lei mental pastilhas de mentol

O português paga calado cada prestação
Para banhos de sol nem casa se precisa
E cai-nos sobre os ombros quer a arma quer a sisa
E o colégio do ódio é a patriótica organização

Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nessa orla costeira qual de nós foi um dia menino?

Há neste mundo seres para quem
A vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe
Atenta a gravidade do momento

O meu país é o que o mar não quer
É o pescador cuspido à praia à luz do dia
Pois a areia cresceu e o povo em vão requer
Curvado o que de fronte erguida já lhe pertencia

A minha terra é uma grande estrada
Que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer

Ruy Belo

As palavras que te envio são interditas

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.

Eugénio de Andrade

Wednesday, May 04, 2005

Digam!

Digam!
Lá porque estão acesas as estrelas,
será porque elas são necessárias a alguém?
Será porque alguém há a desejar que existam?
Será porque alguém chama a esses escarros, pérolas?
E, vencendo
a poeirenta borrasca do meio-dia,
alguém corre p´ra Deus,
temendo chegar tarde,
chora,
beija-lhe a mão nodosa,
implora -
que lhe falta um estrela! -
jura
que, sem estrelas, não pode suportar este martírio.
E depois,
lá vai com a sua angústia,
mostrando paz na cara.
Perguntando a qualquer:
"Agora, está melhor, não é assim?
Já não tens medo?
Não?"
Digam!
Lá porque estão acesas
as estrelas -
será porque elas são necessárias a alguém?
será porque é - indispensável,
que cada noite
por cima dos telhados
uma só estrela, ao menos, se ponha a reluzir?

Vladimir Maiakowski (1913)

Keep it loose keep it tight

well I walked over the bridge
into the city where I live
and I saw my old landlord
well, we both said hello there was nowhere else to go
cause his rent I couldn’t afford
well relationships change though I think its kind of strange
how money makes a man grow
some people they claim if you get enough fame
you live over the rainbow
over the rainbow



but the people on the street out on buses or on feet
we all got the same blood flow
oh, in society every dollar got a deed
we all need a place where we can go
and feel over the rainbow
and sometimes we forget what we got
who we are,
and who we are not
I think we got a chance to make it right
keep it loose
keep it tight
keep it tight
I’m in love with a girl who’s in love with the world
and I can’t help but follow
though I know someday she is bound to go away
and stay over the rainbow
gotta learn how to let her go
over the rainbow
sometimes we forget who we got
who they are
and who they are not
there is so much more in love than black and white
keep it loose child
gotta keep it tight
keep it loose child
keep it tight
keep it tight

Letra de Amos Lee

Tuesday, May 03, 2005

Boneco Desfeito

Surgiu no palco, um dia um bailarino,
Surgiu soberbamente nu, - jogando
Nas mãos ageis de clown e de menino
Cem máscaras rodando, rodopiando...

Sobre um décor violento e sibilino
Cegamente bailou, tombou bailando,
Como se mais não fora seu destino
Que os eu bailado altivo e miserando.

No palco jaz agora um mutilado:
Jaz morto e nu, decapitado, olhado
Por milhões de olhos sem pudor nem vista.

...Que as máscaras sem fim que ele jogara
Não eram mais, talvez, que a própria cara
Dum desgraçado e humano ilusionista!

JOSÉ RÉGIO

Monday, April 25, 2005

Acordar Tarde

tocas as flores murchas que alguém te ofereceu
quando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou
a curva - e o serviço postal não funcionou
no dia seguinte procuras ávido aquilo que o mar não devorou
e passas a língua na cola dos selos lambidos
por assassinos - e a tua mão segurando a faca
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado
dos amantes ocasionais -
nada a fazer irás sozinho vida dentro
os braços estendidos como se entrasses na água
o corpo num arco de pedra tenso simulando a casa
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia



Al Berto

Friday, April 22, 2005

eu não sei quem te perdeu

Quando veio,
Mostrou-me as mãos vazias,
As mãos como os meus dias,
Tão leves e banais.
E pediu-me
Que lhe levasse o medo,
Eu disse-lhe um segredo:
"Não partas nunca mais".

E dançou,
Rodou no chão molhado,
Num beijo apertado
De barco contra o cais.

E uma asa voa
A cada beijo teu,
Esta noite
Sou dono do céu,
E eu não sei quem te perdeu.

Abraçou-me
Como se abraça o tempo,
A vida num momento
Em gestos nunca iguais.
E parou,
Cantou contra o meu peito,
Num beijo imperfeito
Roubado nos umbrais.

E partiu,
Sem me dizer o nome,
Levando-me o perfume
De tantas noites mais.

E uma asa voa
A cada beijo teu,
Esta noite
Sou dono do céu,
E eu não sei quem te perdeu.


Pedro Abrunhosa.

Thursday, April 21, 2005

Cantiga de Amigo

Nem um poema nem um verso nem um canto
tudo raso de ausência tudo liso de espanto
e nem Camões Virgílio Shelley Dante
--- o meu amigo está longe
e a distância é bastante.

Nem um som nem um grito nem um ai
tudo calado todos sem mãe nem pai
Ah não Camões Virgílio Shelley Dante!

--- o meu amigo está longe
e a tristeza é bastante.

Nada a não ser este silêncio tenso
que faz do amor sozinho o amor imenso.
Calai Camões Virgílio Shelley Dante:
o meu amigo está longe
e a saudade é bastante!

Ary dos Santos

Sunday, April 17, 2005

Saturday, April 16, 2005

Declaração de Amor

Tentei dizer quanto te amava, aquela vez, baixinho
mas havia um grande berreiro, um enorme burburinho
e, pensando bem, o berçário não era o melhor lugar.
Você de fraldas, uma graça, e eu pelado lado a lado,
cada um recém-chegado você sem saber ouvir, eu sem saber
falar.

Tentei de novo, lembro bem, na escola.
Um PS no bilhete pedindo cola interceptado pela
professora como um gavião.
Fui parar na sala da diretora e depois na rua
enquanto você, compreensivelmente, ficou na sua.

A vida é curta, longa é a paixão.

Numa festinha, ah, nossas festinhas, disse tudo:
"Eu te adoro, te venero, na tua frente fico mudo"
E você não disse nada. E você não disse nada.
Só mais tarde, de ressaca, atinei.
Cheio de amor e Cuba, me enganei e disse tudo para uma
almofada.

Gravei, em vinte árvores, quarenta corações.
O teu nome, o meu, flechas e palpitações:
No mal-me-quer, bem-me-quer, dizimei jardins.
Resultado: sou persona pouco grata corrido aos gritos de
"Mata! Mata!" por conservacionistas, ecólogos e afins.

Recorri, em desespero, ao gesto obsoleto:
"Se não me segurarem faço um soneto"
E não é que fiz, e até com boas rimas?
Você não leu, e nem sequer ficou sabendo.
Continuo inédito e por teu amor sofrendo.

Mas fui premiado num concurso em Minas.
Comecei a escrever com pincel e piche num muro branco,
o asseio que se lixe, todo o meu amor para a tua ciência.
Fui preso, aos socos, e fichado.
Dias e mais dias interrogado: era PC dissidência?

Te escrevi com lágrimas, sangue, suor e mel
( você devia ver o estado do papel )
uma carta longa, linda e passional.
De resposta nem uma cartinha
nem um cartão, nem uma linha!
Vá se confiar no Correio Nacional.

Com uma serenata sim, uma serenata como nos tempos da
Cabocla Ingrata me declararia, respeitando a métrica.
Ardor, tenor, a calçada enluarada...
havia tudo sob a tua sacada
menos tomada pra guitarra elétrica.

Decidi, então, bota a maior banca no céu e escrever com
fumaça branca: "Te amo, assinado..." e meu nome bem legível.
Já tinha avião, coragem, brevê tudo para
impressionar você mas veio a crise, faltou o combustível.

Ontem você me emprestou o seu ouvido e na discoteca, em
meio do alarido, despejei meu coração.
Falei da devoção há anos entalada e você disse
"Não escuto banda". Disse "eu não escuto nada".

Curta é a vida, longa é a paixão.

Na velhice, num asilo, lado a lado em meio a um silêncio
abençoado direi o que sinto, meu bem.
O meu único medo é que então empinando a orelha com a mão
você me responda só: "Hein?".

Luis Fernando Veríssimo

Thursday, April 14, 2005

Para Joana

Filha,

na areia movediça das palavras, eu tenho procurado, juro,
as que nasçam só nossas,
certas, insubstituíveis, insubmissas.
Com ternura lhes toco e as levo ao coração,
frias ou gastas quase sempre, de outros usos.
Como se fossem algas,
escorrem por entre os dedos que as seguram.
Outras, agarro-as bem, tinjo-as de sangue. São
as que me comovem.
Com elas choro e sigo a sua frustração de claunes que tornaram
[ainda mais triste cada infância.

Mas, persigo-as, sim, quero-as ainda, as palavras
trabalho-as
com a aplicação do alquimista.
E do athanor saem só pequenos peixes de ouro
que nada têm a ver com o mar que separa o velho galeão
que de gusanos
me construo
e o teu corpo de mulher que é preciso aceitar urgentemente.
Ou aceitar de outro modo:
como súbito se abrisse a porta da casa e lá fora estivesse caindo
[uma chuva quente que a todos nos molhasse de uma estranha doçura.

Ah, minha filha, com que rigor procuro
o sinal de sermos o que somos
neste rio sem margens
ou talvez nesta praia em cuja espuma quente
é possível molhar ritualmente os pés e as mãos e partir a correr
nus
em direcções opostas
sem nada sugerir
a morte nem a vida
apesar de ambas estarem sempre para chegar.

Ah, o que tenho procurado, juro.
E que inútil junto às frondosas árvores dos símbolos
mais doces mais íntimos mais ternos cruéis acusadores.
Também a esses os levo à altura do peito e os encontro escassos de forma.
Na bigorna não aguentam a violência apaixonada do ferreiro.

E, de novo, procuro entre nomes de flores cidades ou estrelas
e nem sequer nos empedrados rostos das catedrais que eu vi
encontrei nada que pudesse trazer para aqui
outras coisas que pudesse ir amontoando com o tempo
para ir compondo o poema, minha filha, que há dezasseis anos ando para te escrever
mas que não fui capaz
porque escusado é dizer que é dentro de mim que habita uma enorme rosa de fogo
que não se vê do lado das palavras ou das pedras.


Bruxelas, 1981

A Viagem Possível (1981)

Emanuel Félix

Wednesday, April 13, 2005

I Grieve

It was only one hour ago
It was all so different then
There’s nothing yet has really sunk in
Looks like it always did
This flesh and bone
It’s just the way that you would tied in
Now there’s no-one home

I grieve for you
You leave me
‘so hard to move on
Still loving what’s gone
They say life carries on
Carries on and on and on and on

The news that truly shocks is the empty empty page
While the final rattle rocks it’s empty empty cage
And I can’t handle this

I grieve for you
You leave me
Let it out and move on
Missing what’s gone
They say life carries on
They say life carries on and on and on

Life carries on
In the people I meet
In everyone that’s out on the street
In all the dogs and cats
In the flies and rats
In the rot and the rust
In the ashes and the dust
Life carries on and on and on and on
Life carries on and on and on

It’s just the car that we ride in
A home we reside in
The face that we hide in
The way we are tied in
And life carries on and on and on and on
Life carries on and on and on

Did I dream this belief?
Or did I believe this dream?
Now I can find relief
I grieve

Peter Gabriel

Tuesday, April 12, 2005

Para DSousa

A gente veio dos montes gritando em voz de
firmeza a dor dos passados mortos,
A força da cor da aurora.
Pintando painéis de basalto,
Soluços, vulcões e misérias,
A gente veio dos montes gritando em cor
de ter corpo
a voz de ter som por dentro.
A gente veio dos montes desarmada de mistérios,
de cabelos caídos
E braços estendidos, de mãos abertas e ossos duros.
A gente veio dos montes
Abraços, lágrimas de gente.
A gente estendeu lençóis e fez países de chuva,
a gente cantou baladas
E fez rios de pautas e notas de chumbo, diante dos olhos evidentes
Da natureza da gente.
A gente veio dos montes, despida de preconceitos,
lavar carros nas estradas com
Baldes de água da chuva,
a gente veio de lá com bandeiras de saudade e
capas de sol e luz.
A gente veio dos montes, da terra acima disto,
desta questão de escrever de noite aos bocadinhos,
a gente veio dos montes podia ter vindo da terra,
mas veio dos montes,
porque as palavras em que te tenho
começadas pela letra m, lembram-me de ti
e lembram-me a gente da minha terra, da tua terra,
A gente que o vento ecoa,
A gente que morre no eco.
A gente que manda na lei e sai de casa ao
Domingo com dores de sangue e sal,
a gente que compra ao sábado o matutino original
e o lê mês a mês na esperança orçamental
de que sucumba o preço,
de que compre pela manhã o m da sua vida.
A gente que veio dos montes come papas de milho e
bebe água das pedras da cascata que lá corre;
a gente que veio dos montes não tem pneus para asfalto nem conduz por desporto...
---tem gente de hífen longo gente------
de geometria indecisa, gente que cava o m da matéria e se esculpe com ar e argila.
Gente de ABC, gente que não chora e lê,
Gente que se consola e desola com a fraqueza de um bicho,
gente que entretém o gosto num espelho de sala para sair para a rua a pedir,
em cada sorriso, uma esmola.
A gente que veio dos montes com pastilhas de balão
não lê livros franceses nem nas horas vagas,
não sonha com personagens de literatura nem atormenta os políticos fracos.
É gente dos montes.
Gente dos meus montes de palavras que
aglomero em frases doidas e hífens que aprendi
a respeitar na métrica das minhas preferidas, favoritas, minhas...
gentes de m de montes, gentes de m de meu, gente de mensagem revirada,
de aposta em vão trocada por arquitecta mesada do sonho de te Escrever m.
Tem gente que não me olha. Tem gente que não me lê.
Tem gente. Há gente.
Para a gente.

( Novembro 2004)
( Muito obrigada! Um abraço. Até!...)

Monday, April 11, 2005

Meu Amor

Nada a fazer, meu amor, somos da Terra do Nunca e é para lá que vamos, meu amor,
Quando estas saudades esculpirem uma canção, dentro do peito, nada a fazer a mais ou a menos, meu amor, somos do lado de lá.

As penas, as graças, as dores, os medos, meu amor são de lá, do lado da aurora, do centro da vida, do centro do mundo, do nosso, meu amor, meu amor, minha chama, meu sangue, minha haste, meu lume, minha paz, meu espaço.

Nada a fazer.
Meu amor.
Meu movimento de esferas.

Minha lança em terra alheia. Meu capítulo de página quebrada, minha saudade ancorada no seio desta esperança.
Meu amor que me partes. Meu amor que envelheces

No retrato vazio. No álbum a meio mundo, na asa que escolheste, meu amor, meu traço, meu rumo, minha fraqueza de espanto, minha luz, minha magia
Minha estrela, meu amor.

Nada a fazer. Minha estrela. Nada a fazer entre os medos e os dedos de conversas sempre iguais convertidas em poemas controversos que te deixo no colo, como um sopro de ar de mar de saudades

E afectos.

Nos teus olhos, um poema, meu amor, é lido alto. Alto.

Maria Amaro

Epitaph on a Tyrant

Perfection, of a kind, was what he was after,
And the poetry he invented was easy to understand;
He knew human folly like the back of his hand,
And was greatly interested in armies and fleets;
When he laughed, respectable senators burst with laughter,
And when he cried the little children died in the streets.

W.H.Auden

Sunday, April 10, 2005

Nobody does it better

Nobody does it better
Makes me feel sad for the rest
Nobody does it half as good as you
Baby, you're the best
I wasn't looking
But somehow you found me
I tried to hide from your love light
But like heaven above me
The spy who loved me
Is keeping all my secrets safe tonight

And nobody does it better
Though sometimes i wish someone would
Nobody does it quite the way you do
Why'd you have to be so good
The way that you hold me
Whenever you hold me
There's some kind of magic inside
That keeps me from running
But just keep it coming how'd you learn to do the things you do
And nobody does it better
Makes me feel sad for the rest

Nobody does it quite like as you
Baby, baby, baby you're the best
Baby you're the best

Radiohead

Metade

Que a força do medo que tenho não me impeça de ver o que anseio.
Que a morte de tudo que acredito não me tape os ouvidos e a boca.
Porque metade de mim é o que eu grito, mas a outra metade é silêncio.

Que a música que eu ouço ao longe seja linda, ainda que triste.
Que a mulher que eu amo seja sempre amada, mesmo que distante.
Porque metade de mim é partida e a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo não sejam ouvidas como prece nem repetidas com fervor,
Apenas respeitadas como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimento.
Porque metade de mim é o que eu ouço, mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora se transforme na calma e na paz que eu mereço,
Que essa tensão que me corroe por dentro seja um dia recompensada.
Porque metade de mim é o que eu penso e a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste, que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável
Que o espelho reflita em meu rosto o doce sorriso que eu me lembro de ter dado na infância.
Porque metade de mim é a lembrança do que fui, a outra metade eu não sei...

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria para me fazer aquietar o espírito.
E que o teu silêncio me fale cada vez mais.
Porque metade de mim é abrigo, mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta, mesmo que ela não saiba, e que ninguém a tente
Complicar porque é preciso simplicidade para fazê-la florescer.
Porque metade de mim é a plateia e a outra metade, a canção.

E que minha loucura seja perdoada.
Porque metade de mim é amor e a outra metade... também.

Oswald Montenegro

Saturday, April 09, 2005

A Banda, Chico Buarque

Estava à toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
O homem sério que contava dinheiro parou
O faroleiro que contava vantagem parou
A namorada que contava as estrelas parou
Pra ver, ouvir e dar passagem
A moça triste que vivia calada sorriu
A rosa triste que vivia fechada se abriu
E a meninada toda se assanhou

Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou
Que ainda era moço pra sair no terraço e dançou
A moça feia debruçou na janela
Pensando que a banda tocava pra ela
A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu
A lua cheia que vivia escondida surgiu
Minha cidade toda se enfeitou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
Mas para meu desencanto
O que era doce acabou
Tudo tomou seu lugar
Depois que a banda passou
E cada qual no seu canto
Em cada canto uma dor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor

Chamo-te

Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.

Peço-Te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só de Teus olhares me purifique e acabe.
Há muitas coisas que não quero ver.

Peço-Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo.
E que o Teu reino antes do tempo venha
E se derrame sobre a Terra
Em Primavera feroz precipitado.

Sophia de Mello Breynner

Thursday, March 31, 2005

Queixa das Almas Jovens Censuradas

Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola

Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade

Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência

Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro

Penteiam-nos os crâneos ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós

Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo

Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro

Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco

Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura

Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante

Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino

Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte

Natália Correia

Tuesday, March 29, 2005

Questionário

Qual considera ser a sua missão na vida?
Sou um ser humano absolutamente inútil.
Quais as suas convicções políticas?
O que está está bem. A oposição
ao que está está bem. A gente deveria ser
capaz de imaginar uma terceira via - mas qual?
A sua opinião em religião - se a tem?
A mesma que na música: na verdade só
quem for realmente imusical pode ser musical.
O que procura nas pessoas? As minhas relações
infelizmente têm pouca ou nenhuma consistência.
O que procura nos livros? Profundidade filosófica?
Vastidão? Elevação? Épica? Lírica?
Procuro a esfera perfeita.
Qual é a coisa mais bela que conhece?
Pássaros nos cemitérios, borboletas nos campos de batalha,
qualquer coisa entre. Não sei.
O seu hobby preferido? Não tenho hobbies.
O seu pecado favorito? Onanismo.
E para concluir (tão brevemente quanto possível):
Porque é que escreve?
Não tenho mais nada a fazer. Vate recto.
Faz jogos de palavras também?
Sim - também faço jogos de palavras.

In Antologia Poética, Tradução de Ana Hatherly e Vasco Graça Moura, Quetzal, 1992

Saturday, March 26, 2005

You are Welcome to Elsinore

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

Mário Cesariny

Thursday, March 24, 2005

II

E era uma vez este homem
que era um chevrolet
casado com uma mulher de vidro
que era uma colher de prata
Tempos depois sobreveio uma zanga
que era uma criança nua
entre umas tábuas de passar a ferro
e dois elevadores lindíssimos

Metrónomo (disseram eles)

Verdadeira saudade pernilonga
o pára-raios pôs-se a esfardar romanticamente o toldo
de uma máquina de escrever disposta para o amor às quatro no
interior de um quarto
que era uma planície redonda semeada de vírgulas violeta
com um pequeno garfo nas costas
que era o amanhecer que é uma árvore
na boca de uma mosca de veludo rosa

Metrónomo metrónomo (disseram eles ainda)
é uma árvore é uma pedra que vai começar o terceiro canto?

É a aflição dos outros, meu amor.

Lembro-me de tudo como se fosse hoje
as crianças brincavam nos jardins
com um pequeno garfo nas costas
sem dúvida o mesmo de há bocado
e até era domingo vê lá tu
de repente apareceste muito devagar a meu lado
arrastando sem esforço dois aparadores baratíssimos
ai! minha tristeza não era uma barca
breve houve lapidações em série
com um ligeiro clic de chaufagem aberta
todos os meus irmãos começaram a andar velozmente para trás
pobres dos meus irmãos que será feito deles e de nós que fizemos?

Imossível saber-se até onde irá connosco a nossa confiança
Ficaste, mão que aperto todas as manhãs para atravessar incólumes
os espaços vazios
Ficaste, peito sangrento do mundo largada para o sol entre os bichos
e eu
meu único amor meu amor meu múltiplo amor meu
tu que és uma mesa redonda enamorada dos seus próprios círculos
um alcaide sem discos um maço de cigarros
que se descobriu flor
que se descobriu água
que se abriu de repente
que gritou de repente
que implantou na minha vida de repente a carola perfeita
da desorganização

Não me encontrarás como um anel na curvatura I - Z do teu dedo
mindinho
nem na treva que exalta os teus cabelos
nem no espantoso hall da tua testa fechada iluminadíssima
encontrar-me-ás numa nuvem de escamas milimétricas em torno da
tua boca
com toda a força principal na boca
ou nesta casa que é um homem morto
rodeado de rostos sempre translúcidos

- Onde está o homem que era um chevrolet
casado com uma vírgula de amianto?
Certo e sabido que anda sobre as águas que o matei sem querer
estas estrelas brilham com tal nitidez
que acabam sempre por tornar-se suspeitas

Não importa transfigurá-lo-ei em poderoso egípcio

Abracadabra! Vram! Abracadabra!

Os teus olhos estão belos como a lua dos rios exteriores

Mário Cesariny

Wednesday, March 23, 2005

Muito mais grave

Todas as parcelas da minha vida têm algo teu
e isso na verdade não é nada de extraordinário
tu o sabes tão objectivamente como eu

no entanto há algo que gostaria de clarificar
quando digo todas as parcelas
não me refiro somente a esta de agora
a esta de esperar-te e aleluia encontrar-te
e caralho perder-te
e voltar a encontrar-te
e oxalá nada mais

não me refiro somente a que de repente digas
vou chorar
e eu com um discreto nó na garganta
bom chora
e que um lindo aguaceiro invisível nos ampare
e talvez por isso venha em seguida o sol

não me refiro somente a que dia após dia
aumente o stock das nossas pequenas
e decisivas cumplicidades
ou que eu possa ou acreditar que possa
converter os meus reveses em vitórias
ou que me faças o terno presente
do teu mais recente desespero

não
a coisa é muitíssimo mais grave

quando digo todas as parcelas
quero dizer que para além desse doce cataclismo
também estás a reescrever a minha infância
essa idade em que se diz coisas adultas e solene
e os solenes adultos as celebram
e tu ao invés sabes que isso não serve
quero dizer que estás a rearmar a minha adolescência
esse tempo em que fui um velho carregado de receios
e tu sabes ao invés extrair desse páramo
o meu gérmen de alegria e regá-lo olhando-o

quero dizer que estás a sacudir a minha juventude
esse cântaro que ninguém nunca tomou entre as suas mãos
essa sombra que ninguém aproximou da sua sombra
e tu ao invés sabes estremecê-la
até que comecem a cair as folhas secas
e fique a armação da minha verdade sem proezas

quero dizer que estás a abraçar a minha maturidade
esta mistura de espanto e experiência
este estranho confim de angústia e neve
esta vela que ilumina a morte
este precipício da pobre vida

como vês é mais grave
muitíssimo mais grave
porque com estas ou com outras palavras
quero dizer que não és somente
a querida rapariga que és
mas também as esplêndidas
ou cautelosas mulheres
que quis ou quero

porque graças a ti descobri
(dirás que já era tempo
e com razão)
que o amor é uma baía linda e generosa
que se ilumina e se escurece
conforme venha a vida

uma baía onde os barcos
chegam e vão embora

chegam com pássaros e augúrios
e vão embora com sereias e neblinas
uma baía linda e generosa
onde os barcos chegam
e vão embora
mas tu
por favor
não vás embora.

Mário Benedetti

Sunday, March 20, 2005

Transforma-se o amador na cousa amada

Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si sómente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim co'a alma minha se conforma,

Está no pensamento como ideia;
[E] o vivo e puro amor de que sou feito,
Como matéria simples busca a forma.

Camões

Saturday, March 19, 2005

Ausência

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.


Vinicius de Moraes
Rio de Janeiro, 1935
in Forma e exegese

Sunday, March 06, 2005

Resíduo

De tudo fica um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
Ficou um pouco.
Fica um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura fica um pouco
(muito pouco).
Pouco ficou deste pó
De que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos,
pouco, pouco, muito pouco.
Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
De duas folhas de grama,
Do maço - vazio - de cigarros, ficou um pouco.
Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
No queixo de tua filha.
Do teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Fica um pouco de tudo,
No pires de porcelana,
dragão partido, flor branca.
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato
Se de tudo fica um pouco,
Mas porque não ficaria
um pouco de mim? No trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
Na consoante?
No poço?
Um pouco fica oscilando
Na embocadura dos rios
E os peixes não o evitam,
Um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
cabelo na manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver...de aspirina.
De tudo ficou um pouco.
E de tudo fica um pouco.
Oh, abre os vidros de loção,
E abafa
o insuportável mau cheiro da memória.
Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas o sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte de escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob os teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

Carlos Drummond de Andrade

Friday, March 04, 2005

Encontros e Despedidas

Mande notícias do mundo de lá
Diz quem fica
Me dê um abraço
Venha me apertar
Tô chegando
Coisa que gosto é poder partir
Sem ter planos
Melhor ainda é poder voltar
Quando quero

Todos os dias é um vai-e-vem
A vida se repete na estação
Tem gente que chega pra ficar
Tem gente que vai pra nunca mais
Tem gente que vem e quer voltar
Tem gente que vai e quer ficar
Tem gente que veio só olhar
Tem gente a sorrir e a chorar

E assim, chegar e partir
São só dois lados
Da mesma viagem
O trem que chega
É o mesmo trem da partida
A hora do encontro
É também despedida
A plataforma dessa estação
É a vida desse meu lugar
É a vida desse meu lugar
É a vida

Maria Rita

Tuesday, March 01, 2005

25 de Abril

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo.

Sophia de Mello Breyner

Sunday, February 20, 2005

Os Estatutos do Homem

Artigo I.
Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II.
Fica decretado que todos os dias da semana,
nclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III.
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV.
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único:
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V.
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI.
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo
gosto de aurora.

Artigo VII.
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII.
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX.
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X.
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.

Artigo XI.
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII.
Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII.
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

Santiago do Chile, abril de 1964

Thiago Mello

Monday, February 14, 2005

Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.

Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade

Sunday, February 13, 2005

O Palácio da Ventura

Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busca anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formusura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão -- e nada mais!


Antero de Quental

Thursday, February 10, 2005

Saber Viver é vender a alma ao Diabo

Gosto dos que não sabem viver,
dos que se esquecem de comer a sopa
((Allez-vous bientôt manger votre soupe,
s... b... de marchand de nuages?»)
e embarcam na primeira nuvem
para um reino sem pressa e sem dever.

Gosto dos que sonham enquanto o leite sobe,
transborda e escorre, já rio no chão,
e gosto de quem lhes segue o sonho
e lhes margina o rio com árvores de papel.

Gosto de Ofélia ao sabor da corrente.
Contigo é que me entendo,
piquena que te matas por amor
a cada novo e infeliz amor
e um dia morres mesmo
em «grande parva, que ele há tanto homem!»

(Dá Veloso-o-Frecheiro um grande grito?..)

Gosto do Napoleão-dos-Manicómios,
da Julieta-das-Trapeiras,
do Tenório-dos-Bairros
que passa fomeca mas não perde proa e parlapié...

Passarinheiros, também gosto de vocês!
Será isso viver, vender canários
que mais parecem sabonetes de limão,
vender fuliginosos passarocos implumes?

Não é viver.
É arte, lazeira, briol, poesia pura!

Não faço (quem é parvo?) a apologia do mendigo;
não me bandeio (que eu já vi esse filme...)
com gerações perdidas.

Mas senta aqui, mendigo:
vamos fazer um esparguete dos teus atacadores
e comê-lo como as pessoas educadas,
que não levantam o esparguete acima da cabeça
nem o chupam como você, seu irrecuperável!

E tu, derradeira geração perdida,
confia-me os teus sonhos de pureza
e cai de borco, que eu chamo-te ao meio-dia...

Por que não põem cifrões em vez de cruzes
nos túmulos desses rapazes desembarcados p'ra
[morrer?

Gosto deles assim, tão sem futuro,
enquanto se anunciam boas perspectivas
para o franco frrrrançais
e os politichiens si habiles, si rusés,
evitam mesmo a tempo a cornada fatal!

Les portugueux...
não pensam noutra coisa
senão no arame, nos carcanhóis, na estilha,
nos pintores, nas aflitas,
no tojé, na grana, no tempero,
nos marcolinos, nas fanfas, no balúrdio e
... sont toujours gueux,
mas gosto deles só porque não querem
apanhar as nozes...

Dize tu: - Já começou, porém, a racionalização do
[trabalho.
Direi eu: - Todavia o manguito será por muito tempo
o mais económico dos gestos!

*

Saber viver é vender a alma ao diabo,
a um diabo humanal, sem qualquer transcendência,
a um diabo que não espreita a alma, mas o furo,
a um satanazim que se dá por contente
de te levar a ti, de escarnecer de mim...



Alexandre O´Neill, Poesias Completas 1951/1981, Biblioteca de Autores Portugueses, Imprensa Nacional Casa da Moeda

Wednesday, February 09, 2005

Poema do Afinal

No mesmo instante em que eu, aqui e agora,
Limpo o suor e fujo ao Sol ardente,
Outros, outros como eu, além e agora,
Estremecem de frio e em roupas se agasalham.



Enquanto o Sol assoma, aqui, no horizonte,
E as aves cantam e as flores em cores se exaltam,
Além, no mesmo instante, o mesmo Sol se esconde,
As aves emudecem e as flores cerram as pétalas.


Enquanto eu me levanto e aqui começo o dia,
Outros, no mesmo instante, exactamente o acabam.
Eu trabalho, eles dormem; eu durmo, eles trabalham.
Sempre no mesmo instante.
Aqui é Primavera. Além é Verão.


Mais além é Outono. Além, Inverno.
E nos relógios igualmente certos,
Aqui e agora,
O meu marca meio-dia e o de além meia-noite.



Olho o céu e contemplo as estrelas que fulgem.
Busco as constelações, balbucio os seus nomes.
Nasci a olhá-las, conheço-as uma a uma.
São sempre as mesmas, aqui, agora e sempre.



Mas além, mais além, o céu é outro,
Outras são as estrelas, reunidas
Noutras constelações.
Eu nunca vi as deles;


Eles,
Nunca viram as minhas.
A Natureza separa-nos.
E as naturezas.


A cor da pele, a altura, a envergadura,
As mãos, os pés, as bocas, os narizes,
A maneira de olhar, o modo de sorrir,
Os tiques, as manias, as línguas, as certezas.
Tudo.



Afinal
Que haverá de comum entre nós?
Um ponto, no infinito.



António Gedeão, Poemas Escolhidos, Lisboa, Sá da Costa, 2001

Tuesday, February 08, 2005

voz numa pedra

Não adoro o passado
não sou três vezes mestre
não combinei nada com as furnas
não é para isso que eu cá ando
decerto vi Osíris porém chamava-se ele nessa altura Luiz
decerto fui com Isis mas disse-lhe eu que me chamava João
nenhuma nenhuma palavra está completa
nem mesmo em alemão que as tem tão grandes
assim também eu nunca te direi o que sei
a não ser pelo arco em flecha negro e azul do vento

Não digo como o outro: sei que não sei nada
sei muito bem que soube sempre umas coisas
que isso pesa
que lanço os turbilhões e vejo o arco íris
acreditando ser ele o agente supremo
do coração do mundo
vaso de liberdade expurgada do menstruo
rosa viva diante dos nossos olhos
Ainda longe longe essa cidade futura
onde «a poesia não mais ritmará a acção
porque caminhará adiante dela»
Os pregadores de morte vão acabar?
Os cegadores do amor vão acabar?
A tortura dos olhos vai acabar?
Passa-me então aquele canivete
porque há imenso que começar a podar
passa não me olhas como se olha um bruxo
detentor do milagre da verdade
a machadada e o propósito de não sacrificar-se não construirão ao sol coisa nenhuma
nada está escrito afinal

Mário Cesariny

Monday, February 07, 2005

A Invenção do Amor

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas
janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de apa-
relhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da
nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia
quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e
fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio
A descoberta
A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou
A TV anuncia
iminente a captura

A polícia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta
fechada para o mundo

É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique
Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia
Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos



Daniel Filipe, A Invenção do Amor e Outros Poemas, Lisboa, Presença, 1972

Sunday, February 06, 2005

Máquina Fotográfica

É na câmara escura dos teus olhos
que se revela a água
água imagem
água nítida e fixa
água paisagem
boca nariz cabelos e cintura
terra sem nome
rosto sem figura
água móvel nos rios
parada nos retratos
água escorrida e pura
água viagem trânsito hiato.

Chego de longe. Venho em férias. Estou cansado.
Já suei o suor de oito séculos de mar
o tempo de onze meses de ordenado;
por isso, meu amor, viajo a nado
não por ser português mal empregado
mas por sofrer dos pés
e estar desidratado.

Chego. Mudo de fato. Calço a idade
que melhor quadra à minha solidão
e saio a procurar-te na cidade
contrastada violenta negativa
tu única sombra murmurada
única rua mal iluminada
única imagem desfocada e viva.

Moras aonde eu sei.
É na distância
onde chego de táxi.
Sou turista
com trinta e seis hipóteses no rolo;
venho ao teu miradoiro ver a vista
trago a minha tristeza a tiracolo.
Enquadro-te regulo-te disparo-te
revelo-te retoco-te repito-te
compro um frasco de tédio e um aparo
nas tuas costas ponho uma estampilha
e escrevo aos meus amigos que estão longe
charmant pays


the sun is shining
love.



Emendo-te rasuro-te preencho-te
assino-te destino-te comando-te
és o lugar concreto onde procuro
a noite de passagem o abrigo seguro
a hora de acordar que se diz ao porteiro
o tempo que não segue o tempo em que não duro
senão um dia inteiro.
Invento-te desbravo-te desvendo-te
surges letra por letra, película sonora,
do sendo à vogal do tema à consoante
sem presença no espaço sem diferença na hora.
És a rota da Índia o sarcasmo do vento
a cãibra do gajeiro o erro do sextante
o acaso a maré o mapa a descoberta
dum novo continente itinerante.



José Carlos Ary dos Santos, Obra Poética,Lisboa, Edições Avante, 1994.