Saturday, February 05, 2005

O Espírito

Nada a fazer amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;

E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.

Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera:

Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.

Natália Correia

Thursday, February 03, 2005

quantas vezes apostaste a tua vida?
apostei a minha vida mil vezes.
perdeste tudo?
sim, perdi sempre tudo.


José Luís Peixoto

Wednesday, February 02, 2005

O Poema Engravatado

"Meu poema engravatado, de manhã, vem trabalhar, porque alguém que o respeita acreditou nele. Lavado e barbeado, desce motorizado num velho e germânico motor, a íngreme avª alcatroada do Camarada Vladimir Ilionov Lénine. Sentado e quase feliz, guia-se a si e a companheira, de encontro aos climatizados escritórios do nosso falecido burguês de esquerda, respeitável Dr. Karl Marx, a espreguiçar-se da chatice que é a cartola do tio Sam a irritar o chá palestiniano do casmurro Yá Sir Arafat. Bom dia ó Buch! parece que ouve o meu snob poema de gravata, já solteiro e com a esposa entregue a uma empresa de auditoria, da velha boca da pimenta paquistanesa que, na baixa de Maputo, troca dólares em Gujarat e açambarca arroz em urdú. Mas charmoso, meu dromedário poema não se comove nos seus um metro e noventa e três de altura, com fato vestido a prestações, a não ser com o que finge saber o matutino mentícias que, na primeira página, não tem a história triste do magro ardina que o vende. E parado o motor do seu ariano preto germânico, o poema desce a sonhar engravatado o trabalho de suar já, os 35 graus ao sol que são as centesimais cabeças dos antipoemas lá dentro e à sombra, de nariz arrebitado e a ver se o poeta fez amor com despacho o deferindo, ou se bebeu desalmadamente o bulício dos orgasmos de que eles andam há muito demitidos. Meu poema engravatado é um herói que amo por tudo isso e até por ter quem, de entre eles e de entre as contas, as sacanices e as coscuvilhices, o anima a sonhar a eternidade de ser poema entre os camaradas militantes da bajulação que desfardam o proletário para descoser o luxo nipónico do seu sentido capitalismo. Eles não sabem que por debaixo dos aparelhos de ar condicionado, meu poema engravatado cura, com a ventoinha, o suor de os saber, hoje, doutorados em economia na nossa única universidade marxista de ontem e, por isso, não se admira que sejam tão resistentes à mudança, tão desvirtuados da realidade, tão militarmente obsessivos em ter o poder nas suas mãos. Enfermeiras de Aushwitz, pálidas seringas da pressa aos gritos pelos corredores a lamber as paredes do edifício, parem. A vida é, também, chegar a casa e tirar a cueca aos maridos, vê-los esbeltos na virilidade masculina que vos faz perder os sentidos. Não amem demasiados os raios dos papéis que tal como vocês amarelecem, nem se confinem às vírgulas dos despachos, nem à cor dos carimbos, nem em que rascunhos os outros gastam os lápis. Ide, irmãs devotas da burocracia, ide tirar a barriga da miséria depois das horas normais de expediente, e tragam risos pela manhã ao invés das vossas enjoadas ambições, tragam fragrâncias mais intensas ao invés da nafta das vossas compridas roupas, tragam a bela tez da reprodutividade ao invés dos arrepios que são as chatices da menopausa e se acontecer passarem por isso, lembrem-se que é também bela a biologia. E vós carrascos endoidados nos catálogos das modernas viaturas, a sonharem com aparelhos de televisão e a lamberem pelas virilhas da imaginação as tanguinhas da bela empregada chateada da vida por lhe não aumentarem o salário e ainda ter que entender a musculação frenética das vossas braguilhas. Cuidem-se pilinhas saltadoras, emprestem o melhor de vós a causas mais profundas que o País bem precisa. E o meu poema engravatado, vê, também, muito bem, os doutores pequeninos de agora a fazerem mais teses sobre a vida dos outros do que sobre o que aprenderam, os que nunca saberão onde fica Pequim, nem Nauru, nem Kiribati, nem Tuvalu e nunca leram a sério sobre os benefícios da masturbação, sobre a terapia do mijo, e que são tantas vezes capazes de tudo por mais uns tostões e incapazes de nada por carácter e por dignidade. E aos que não sabem, quero que saibam que o meu poema de gravata se sente bem na sua cor muito embora vos incomode isso, camaleões engasgados nos arcos íris que têm e que nem dignos são da única cor que vestem, a do sangue. E também os doutores de longe, peritos nas bichas dos empregos lá e espertos nas mordomias de cá, cama e roupa lavada, não à máquina mas com os mais belos braços das nossas autênticas nativas, desses que sabem tudo sobre nós e nada sobre eles, desses a quem a poesia daqui não comove porque não existe. A todos eles, meu poema engravatado, conhece-os bem, e nas sacanices do passado são iguais nas suas sacanices do presente. Essa gente que não lê poemas, nem livros, nem nada e trabalha até tarde mais por incompetência do que por responsabilidade, esses infelizes malabaristas do riso e do cinismo que dizem dos seus anónimos doutoramentos as mais vis e sujas mentiras sobre a magia e a beleza de escrever amor e senti-lo, de dizer azul e pintá-lo, de sonhar a água e bebê-la, de olhar uma mulher e beijá-la, de sonhar um filho e pari-lo, esses engalanados e copiosos pavões da arrogância e da prepotência não sabem é que o meu poema engravatado se senta ao lado deles por que é autêntico na humildade, é forte na lealdade e é imenso na sua grandeza. E só por isso os vê, e só por isso se cala, ante o veneno das suas línguas. Meu poema engravatado, coerente e forte, militante sonhador, socialista convicto, poeta do amor e das águas, tem direito, quando morrer para à vida, à bandeira do seu país sobre a urna, aos mais verdadeiros choros de quem o amou e respeitou, a viver perpetuamente nos livros que escreveu e a fazer vivo para sempre o que ele com fé toda a vida nunca usou: a poesia da sua gravata."

Eduardo White

Via Tactica e Estratégia

Tuesday, February 01, 2005

Esse é o mote: Vote

Este é o mote: vote.
Estamos todos no mesmo bote.
Vote.
Escolha o menos fracote
e vote.
Já não se votou no Lott?
Pois vote.
Não anule nem faça trote.
Vote.
Pelas barbas do Quixote,
vote!
Não picote o papelote.
Vote.
Tire os nomes de um pote.
Ou do decote.
Mas vote.

Não passa na glote?
Não faz mal.
Vote.
Você preferia ficar em casa ouvindo o Concerto em Dó Maior de
Gottfried Munthel para Orquestra, Baixo Contínuo e Fagote?
Tomando um scotch?
Esquece.
Vote.

Vote em sacerdote,
Ou em hotentote.
Mas vote.
Vote em cocote.
(Mas não em iscariote.)
Mas vote.
Não fique aí pensando "to be or not".
Vote!
E, se no fim faltar rima, não se apague.
Sufrague.

Luís Fernando Veríssimo

escritor Brasileiro.

Corsários à Vista

Duas amigas telefonam-me de Lisboa de urgência.
Alta noite, dormindo em Barcelona, num salto as oiço.
A perfídia centralista outorga carta de Colónia às Ilhas.
Sofro as minhas dores de coxo: prás do sabonete falta-me a paciência.
Os fios telefónicos, com fogo de lagoa, vibram:
Aquelas são das últimas Briandas do Arquipélago:
Uma pobre mulher com traços de fogo nos olhos,
A outra, irada, na alva beleza se excede,
Ambas me emprazam a tudo pelos gados,as nuvens,as calhetas.
O conselho da revolução espera-nos amanhã:
Mesmo de maca, ao General compareço.
Um rumor de Aguilhadas, de bull-dozers velhos, latas de leite,
[ corre as ondas
Chamam-nos os mortos, o mulherio, os baleeiros mansos com o cabo
[ do harpão nas unhas.
As minhas velhas primas, desamparadas, esmolam dos senhores
[ do MEC a renda dos vidros
Confiam no velho coxo, e o velho coxo corre a acudir.
É como fogo posto ou briga de arruaceiros de fora.

As furnas são nossas.
As pipas do vinho velho são nossas,
As carroças do peixinho nossas,
O leite das tetas que ordenhamos,
As pontas com poucos faróis muita craca,
Os caminhos seculares mal calçados
Os chafarizes com um tapete de bosta quente cheiram bem.
Vamos salvar as ilhas: Eu tenho lá ossos de Pai e Mãe.
Sujo seria se não acudisse ao chamado. Rufo ou roqueira, fogueira
[ acesa aos piratas,
Urro de caldeira arrebentada, qualquer apito de dedos na goela
[ serve para a porrada
Amiga, espera-me com as tuas inesgotáveis reservas exoftálmicas:
Arregalar os olhos é um privilégio oportuno
Tu outra, conta comigo na tua dureza brusca ( tu que és sempre menina)

E lá vamos bater o pé de Ciprião a Filipe.
O Marquês de Santa Cruz era uma ovelhinha comparado a estes carnívoros.

A Sala das Batalhas por Escorial explica tudo.
Eu agarro uma insónia, além de perder a noite a berrar da ciática,
Mas estes filhos da mamã hão-de nos pagar tudo o que nos fizerem,
Estes filhos de cerva hão-de afinal entrar na linha,
E levar nas canelas,
Metidos nos porões
( As moças às janelas),
Os grilhões
Que nos queiram enfiar à socapa nos pulsos duros da canga,
Eles que nos tratam como se andássemos de tanga.

( Até que me passe a zanga)

Vitorino Nemésio31.03.1976

Vitorino Nemésio (1901-1978) nasceu na Praia da Vitória, ilha Terceira, Açores, e falceu em Lisboa. Frerquentou a Universidade de Coimbra e foi professor da Faculdade de Letras em Lisboa, tendo também ensinado no Brasil, França, Bélgica, Espanha e Holanda. Além de professor e escritor, dedicou-se à televisão, tendo apresentado um programa cultural durante alguns anos. Da sua colaboração em jornais, destaca-se a direcção de O Dia em 1975.

Monday, January 31, 2005

Amor Combate

"Meu amor que eu não sei. Amor que eu canto. Amor que eu digo.
Teus braços são a flor do aloendro.
Meu amor por quem parto. Por quem fico. Por quem vivo.
Teus olhos são da cor do sofrimento.
Amor-país.
Quero cantar-te. Como quem diz:

O nosso amor é sangue. É seiva. E sol. E primavera.
Amor intenso. Amor imenso. Amor instante.
O nosso amor é uma arma. E uma espera.
O nosso amor é um cavalo alucinante.

O nosso amor é um pássaro voando. Mas à toa.
Rasgando o céu azul-coragem de Lisboa,
Amor partindo. Amor sorrindo. Amor doendo.
O nosso amor é como a flor do aloendro.

Deixa-me soltar estas palavras amarradas
Para escrever com sangue o nome que inventei.
Romper. Ganhar a voz duma assentada.
Dizer de ti as coisas que eu não sei.
Amor. Amor. Amor. Amor de tudo ou nada.
Amor-verdade. Amor-cidade.
Amor-combate. Amor-abril.
Este amor de liberdade."

Joaquim Pessoa

Joaquim Pessoa nasceu no Barreiro em 22 de fevereiro de 1948. Iniciou a carreira no Suplemento Literário Juvenil, do Diário de Lisboa. O seu primeiro livro veio a público em Março de 1975. Ao último original foi atribuído o Prémio de Poesia de 1981 da Secretária de Estado da Cultura.