Tuesday, March 21, 2006

Povoamento

No teu amor por mim há uma rua que começa
Nem árvores nem casas existiam
antes que tu tivesses palavras
e todo eu fosse um coração para elas
Invento-te e o céu azula-se sobre esta
triste condição de ter de receber
dos choupos onde cantam
os impossíveis pássaros
a nova primavera
Tocam sinos e levantam voo
todos os cuidados
Ó meu amor nem minha mãe
tinha assim um regaço
como este dia tem
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera

Ruy Belo, Aquele Grande Rio Eufrates
Lisboa, Editorial Presença, 1996 (5ª ed.)

Sunday, March 19, 2006

O Repouso da Garça (na morte de Natália)

Naquele dia, a cancela da ilha ficara aberta
por masculino descuido, e a taramela do destino
aquietou-se para ouvir passar a garça

Cuidado! é a Natália que aí vem
Infanta de Sagres a caravelar no dorso da atlântida
anti-ciclone das (re)voltas da sapateia
da Grândola Vila Morena da Fajã de Baixo
(alquidar vulcânico da coragem de ser gente
saudade vertical de distâncias a chegar.)

Natália, mulher-caravela! imagino-te ao lado de Florbela
a remoçar o romance e Pedro e Inês;
vejo-te ainda com a batuta da coragem
a desafiar o solfejo antigo de Alice Moderno;
depois, adivinho-te com Antero na reza do soneto Consulta
junto ao primeiro degrau do Sumo-Bem.

Natália, vem daí! O sossego mata-nos, Mulher!
Faz-nos falta o gemido criador da tua verve
e a vertigem ciclópica da tua lira:
. desde que partiste, Portugal está morno:
boceja-se nos Açores, esbraceja-se na Madeira,
e a liberdade recolheu a quartéis.


João-Luís de Medeiros
(gentilmente cedido pelo próprio)

Pastelaria

Afinal o que importa não é a literatura nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que
importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que
importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante
Afinal o que
importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício

e cair verticalmente no vício
Não
é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal
o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal
o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal
o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora!
– rir de tudo
No riso admirável
de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra.


Mário Cesariny