Sunday, December 23, 2007

Meravigliosa Creatura

Litania para o Natal de 1967



Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
numa casa de Hanói ontem bombardeada

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
tem no ano dois mil a idade de Cristo

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
vê-lo-emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
e anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para nos pedir contas do nosso tempo



David Mourão-Ferreira
Lira de Bolso, 1969

Saturday, December 22, 2007

Natal

"Natal divino ao rés-do-chão humano,
Sem um anjo a cantar a cada ouvido.
Encolhido
À lareira,
Ao que pergunto
Respondo
Com as achas que vou pondo
Na fogueira.

O mito apenas velado
Como um cadáver
Familiar…
E neve, neve, a caiar
De triste melancolia
Os caminhos onde um dia
Vi os Magos galopar…"

Monday, December 17, 2007

El breve espacio en que no estás



Pablo Milanés/Víctor Manuel

Sunday, December 16, 2007

Thursday, December 13, 2007

A central das Frases

"...já te disse que são os do primeiro...
...e afinal não pudémos telefonar...
...ai nem queira saber o engenheiro...
...se me dão licença eu vou contar...
...penses nisso era só o que faltava...
...não as outras duas é que são as tais...
...mas o senhor presidente autorizava...
...na avenida centenas de pardais...
...de facto muito inteligente...
...ó filha por aqui fazes favor...
...que veio ontem para falar com a gente...
...é mesmo lá ao fim do corredor..."

Monday, December 10, 2007

Um dia não muito longe não muito perto

"Às vezes sabes sinto-me farto
por tudo isto ser sempre assim.
Um dia não muito longe não muito perto
Um dia muito normal um dia quotidiano
Um dia não é que eu pareça lá muito hirto
entrarás no quarto e chamarás por mim
e digo-te já que tenho pena de não responder
de não sair do meu ar vagamente absorto
farei um esforço parece mas nada a fazer
hás-de dizer que pareço morto
que disparate dizias tu que houve um surto
não sabes de quê não muito perto
e eu sem nada para te dizer
um pouco farto não muito hirto e vagamente absorto
não muito perto desse tal surto
queres tu ver que hei-de estar morto?"

Conselho aos novos críticos do Século XX

Admit nothing
Blame everyone
Be bitter

Barbara Kruger


«Se queres parecer inteligente,
desdenha de quem escreve coisas simples
e desconfia, desconfia sempre
dos sentimentos, das convicções.

Diz mal da tua época,
procura dar a tudo um ar difícil
e cita alguns autores que ninguém leu.

Se queres que te respeitem,
reserva a admiração e o elogio
pra certos mortos bem escolhidos,
de preferência estrangeiros,
e acima de tudo
não caias nunca na vulgaridade
de ser compreendido pelos que te lerem.»

Saturday, December 08, 2007

Thursday, December 06, 2007

Gracias a La Vida



Lindíssima música que acabei de ouvir na entrevista a Fatima Rosado, transmitida pela RDP/Açores no programa de Isabel Gomes.

Wednesday, December 05, 2007

Claridade dada pelo Tempo

I

«Deixa-me sentar numa nuvem
a mais alta
e dar pontapés na Lua
que era como eu devia ter vivido
a vida toda
dar pontapés
até sentir um tal cansaço nas pernas
que elas pudessem voar
mas não é possível
que tenho tonturas e quando
olho para baixo
vejo sempre planícies muito brancas
intermináveis
povoadas por uma enorme quantidade
de sombras
dá-me um cão ou uma bola
ou qualquer coisa que eu possa olhar
dá-me os teus braços exaustivamente
longos
dá-me o sono que me pediste uma vez
e que transformaste apenas para
teu prazer
nos nossos encontros e nos nossos
dias perdidos e achados logo em
seguida
depois de terem passado
por uma ponte feita por nós dois
em qualquer sítio me serve
encontrar o teu cabelo
em qualquer lugar me bastam
os teus olhos
porque
sentado numa nuvem
na lua
ou em qualquer precipício
eu sei
que as minhas pernas
feitas pássaros
voam para ti
e as tonturas que a planície me dá
são feitas por nós
de propósito
para irritar aqueles que não sabem
subir e descer as montanhas geladas
são feitas por nós
para nunca nos esquecermos
da beleza dum corpo
cintilando fulgurantemente
para nunca nos esquecermos
do abraço que nos foi dado
por um braço desconhecido
nós sabemos
tu e eu
que depois de tudo
apenas existem os nossos corpos
rutilantes
até se perderem no
limite do olhar
dá-me um cigarro
mesmo que seja só um
já me basta
desde que seja dado por ti
mas não me leves
não me tires
as tonturas que eu teria
que eu terei
sempre que penso cá de cima
duma altura vertiginosa
onde a própria águia
nada mais é que um minúsculo
objecto perdido
onde a nuvem
mais alta de todas
se agasalha como um cão de caça
leva-me a recordação
apenas a recordação
da vida martelada
que em mim tem ficado
como herança dada há mil e
duzentos anos

deixa que eu fique
muito afastado
silencioso
e único
no alto daquela nuvem
que escolhi
ainda antes de existir

II

Deixa que eu quebre tudo que tenho e que terei
tudo o que é de todos e que só a mim pertence
deixa-me quebrar o cavalo que me deste
na noite do nosso primeiro encontro
deixa-me partir a bola o cão o espaço
deixa-me quebrar a minha casa e a minha cama
a minha única cama
não quero que me contem a aventura
nem que me dêem almofadas
não quero que me ofereçam sombras
só por mim construídas e logo abandonadas
nem sequer esquinas de ruas
não quero a vida
sei claramente que a não quero
a não ser que ela esteja partida quebrada
quebrada por mim e por ti
e a minha infância
essa dou-ta
inteira muito longa e cruel
deixa que dela me fique apenas
essa crueldade
e que nela só eu siga
ignorando o que me deste
e que
martelo ou pedra
eu continue partindo quebrando
esfacelando dilacerando
o teu corpo que já não está ao meu alcance
deixa-me ser anatomicamente autêntico
sem erro
sangrando
perdido para sempre

III

Viver com a crueldade
da criança que
tira os olhos ao pássaro.
um desconhecido
movendo-se constantemente
no deserto
em que cada pegada deixa
bem marcada na areia
a imagem
dessa outra existência
em que a morte e a memória
ainda nada significam

mais alto
muito mais alto talvez
que a claridade
do voo das aves que
partem para o desconhecido
o próprio corpo nada mais é
do que a sombra
bem simples por sinal
em que,
por erro nosso ou dos outros,
já não existe
a persistência do que
foi perdido
e as mãos
as mãos que sentimos
bem presas seguras aptas
essas
todos sabemos
que podem ainda cada vez mais
esmagar com cuidado
com extremo cuidado
dilacerar suavemente
nos olhos
está o amor

IV

Simples como é
a claridade é a coisa
mais difícil de encontrar
talvez porque a distância que nos
separa longa muito longa
e nítida
seja a torre de chumbo do nosso
próprio isolamento
talvez porque sentir
o aparecimento da madrugada
seja a origem do desespero
sombra trópico lâmina
entre nós dois
ouve o que te digo
não esqueças os meus lábios
mesmo quando desfeitos
e a claridade
essa não a procures não nunca
deixa-a ir comigo
até ao esgotamento do meu sangue
até ao limite
do meu corpo em carne viva

V
Eu sei
que há um lugar por descobrir
um lugar tenebroso e cantante
como uma ponte de velhos manequins

o teu corpo
dois seios despedaçados
e o vento só o vento
soprado através
dos teus cabelos»


Mário-Henrique Leiria, Surreal Abjeccion(ismo) in O Surrealismo na Poesia Portuguesa, organização, prefácio e notas de Natália Correia, Lisboa, 2ª edição, frenesi, 2002.

Friday, November 30, 2007

Saber Viver é Vender a Alma ao Diabo

"Gosto dos que não sabem viver,
dos que se esquecem de comer a sopa
(Allez-vous bientôt manger votre soupe,
s... b... de marchand de nuages?")
e embarcam na primeira nuvem
para um reino sem pressa e sem dever.


Gosto dos que sonham enquanto o leite sobe,
transborda e escorre, já rio no chão,
e gosto de quem lhes segue o sonho
e lhes margina o rio com árvores de papel.

Gosto de Ofélia ao sabor da corrente.
Contigo é que me entendo,
piquena que te matas por amor
a cada novo e infeliz amor
e um dia morres mesmo
em "grande parva, que ele há tanto homem!"

(Dá Veloso-o-Frecheiro um grande grito?..)

Gosto do Napoleão-dos-Manicómios,
da Julieta-das-Trapeiras,
do Tenório-dos-Bairros
que passa fomeca mas não perde proa e parlapié...

Passarinheiros, também gosto de vocês!
Será isso viver, vender canários
que mais parecem sabonetes de limão,
vender fuliginosos passarocos implumes?

Não é viver.
É arte, lazeira, briol, poesia pura!

Não faço (quem é parvo?) a apologia do mendigo;
não me bandeio (que eu já vi esse filme...)
com gerações perdidas.

Mas senta aqui, mendigo:
vamos fazer um esparguete dos teus atacadores
e comê-lo como as pessoas educadas,
que não levantam o esparguete acima da cabeça
nem o chupam como você, seu irrecuperável!

E tu, derradeira geração perdida,
confia-me os teus sonhos de pureza
e cai de borco, que eu chamo-te ao meio-dia...

Por que não põem cifrões em vez de cruzes
nos túmulos desses rapazes desembarcados p'ra morrer?

Gosto deles assim, tão sem futuro,
enquanto se anunciam boas perspectivas
para o franco frrrrançais
e os politichiens si habiles, si rusés,
evitam mesmo a tempo a cornada fatal!

Les portugueux...
não pensam noutra coisa
senão no arame, nos carcanhóis, na estilha,
nos pintores, nas aflitas,
no tojé, na grana, no tempero,
nos marcolinos, nas fanfas, no balúrdio e
... sont toujours gueux,
mas gosto deles só porque não querem
apanhar as nozes...

Dize tu: - Já começou, porém, a racionalização do trabalho.
Direi eu: - Todavia o manguito será por muito tempo
o mais económico dos gestos!

*

Saber viver é vender a alma ao diabo,
a um diabo humanal, sem qualquer transcendência,
a um diabo que não espreita a alma, mas o furo,
a um satanazim que se dá por contente
de te levar a ti, de escarnecer de mim..."

Alexandre O´Neill

Poesias Completas
1951/1981
Biblioteca de Autores Portugueses
Imprensa Nacional Casa da Moeda

Sunday, November 25, 2007

Sem título e Bastante Breve

"Tenho o olhar preso aos ângulos escuros da casa
tento descobrir um cruzar de linhas misteriosas, e
com elas quero construir um templo em forma de ilha
ou de mãos disponíveis para o amor....

na verdade, estou derrubado
sobre a mesa em fórmica suja duma taberna verde,
não sei onde
procuro as aves recolhidas na tontura da noite
embriagado entrelaço os dedos
possuo os insectos duros como unhas dilacerando
os rostos brancos das casas abandonadas, á beira mar...

dizem que ao possuir tudo isto
poderia ter sido um homem feliz, que tem por defeito
interrogar-se acerca da melancolia das mãos....
...esta memória lamina incansável

um cigarro
outro cigarro vai certamente acalmar-me
....que sei eu sobre as tempestades do sangue?
E da água?
no fundo, só amo o lodo escondido das ilhas...

amanheço dolorosamente, escrevo aquilo que posso
estou imóvel, a luz atravessa-me como um sismo
hoje, vou correr à velocidade da minha solidão."

Al Berto

Friday, November 23, 2007

Sunday, November 18, 2007

seria o amor português (variações sobre um fado)




"Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

Nada me importa; mas tu enfim me importas.
Importa, por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.

Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
"Que me importa que batam à porta..."
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.

Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhãs
e lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.

Que me importa, agora que me importas,
que batam, se não és tu, à porta."

Green God

"Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.

Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.

Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.

E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
duma flauta que tocava."

Tuesday, November 13, 2007

Citação (importante)

"Quando morrer em nós o último barco da emigração
e a ânsia das Américas perdidas

quando os nossos olhos deixarem de voltar-se tristes
para o vapor sumindo-se na linha do pego;

quando descobrirmos a força que ainda guardam nossos braços
cansados de querer abraçar as estrelas;

quando os dias deixarem de rolar sobre os dias
sem esperança nenhuma para erguer;

quando, enfim, nosso esforço de irmãos fizer brotar
uma outra vida no chão das nossas ilhas

- neste chão que ficou amorosamente esperando
os nossos corpos derrotados na aspereza dos caminhos do retorno -
então, pátria, será nosso o teu destino!"


Pedro da Silveira

Wednesday, November 07, 2007

No teu Poema

NO TEU POEMA - Dul...


"No teu poema
existe um verso em branco e sem medida,
um corpo que respira, um céu aberto,
janela debruçada para a vida.

No teu poema existe a dor calada lá no fundo,
o passo da coragem em casa escura
e, aberta, uma varanda para o mundo.

Existe a noite,
o riso e a voz refeita à luz do dia,
a festa da Senhora da Agonia
e o cansaço
do corpo que adormece em cama fria.
Existe um rio,
a sina de quem nasce fraco ou forte,
o risco, a raiva e a luta de quem cai
ou que resiste,
que vence ou adormece antes da morte.

No teu poema
existe o grito e o eco da metralha,
a dor que sei de cor mas não recito
e os sonhos inquietos de quem falha.

No teu poema
existe um cantochão alentejano,
a rua e o pregão de uma varina
e um barco assoprado a todo o pano.
Existe um rio
a sina de quem nasce fraco ou forte,
o risco, a raiva e a luta de quem cai
ou que resiste,
que vence ou adormece antes da morte.

No teu poema
existe a esperança acesa atrás do muro,
existe tudo o mais que ainda escapa
e um verso em branco à espera de futuro."

José Luis Tinoco

Monday, November 05, 2007

Sunday, November 04, 2007

Las Cosas

"El bastón, las monedas, el llavero,
la dócil cerradura, las tardías
notas que no leerán los pocos días
que me quedan, los naipes y el tablero,
un libro y en sus páginas la ajada
violeta, monumento de una tarde
sin duda inolvidable y ya olvidada,
el rojo espejo occidental en que arde
una ilusoria aurora. Cuántas cosas,
limas, umbrales, atlas, copas, clavos,
nos sirven como tácitos esclavos,
ciegas y extrañamente sigilosas
durarán más allá de nuestro olvido;
no sabrán nunca que nos hemos ido."

Correspondência

"Vejo as nuvens que avançam do Atlântico
para o continente. E, por trás delas, como um pastor
exigente, o vento que as empurra. Depois,
as nuvens passam e volta o sol, com o azul
imutável das manhãs de outono, monótono e distante
como quem o olha, ao sair de casa, sem
tempo para pensar no tempo.

As nuvens, no entanto, continuam
o seu caminho: umas, desfazem-se em água
sobre campos vazios, ou descem para as grandes
cidades para as abraçar com um tédio
enevoado. As que me interessam, porém,
são as que sobem para norte, e ficam
mais frias à medida que as pressões continentais
abrandam o seu curso, Então, param
em dias cinzentos; e, por fim, escurecem
a tua alma, quando as olhas, e te apercebes
de que se aproxima um inverno
de solidão.

A não ser que leias, nesse obscuro céu,
esta carta que te mando."

O Movimento do Mundo, Lisboa, Quetzal Editores, 1996

Friday, November 02, 2007

Thursday, November 01, 2007

Dia de todos os Santos

"Supõe que morri
(Aos mortos se escreve também algumas vezes).
Não sou de cá.
O que me dizem estranho
E ouço o que não há.
Assim, talvez, como estrangeiro,
Encontres palavras que me interessem,
Saibas dar-me o que me tarda...
coisas perdidas que procuro
e talvez se possam dar
aos que partiram e esqueceram
e, por isso,
se lhes oferece o resto de tudo
sem mesmo se saber
que alguma coisa é dada.

Supõe que morri e diz
todas as verdades que se dão aos mortos
o que se confessa a quem não ouve
e espera resposta de ninguém ...

Dizem que os deuses morreram:
Sou da raça deles
à espera de Deus."

Sunday, October 28, 2007

Poema de Joaquim Pessoa

«O piano de cauda das estrelas
tem raízes na música dos lagos.
Amar é a arte da música
num corpo moribundo. Morre-se
de um pequeno átomo de ansiedade e isso
é uma regra do jogo; só assim a morte andará descalça como
uma violeta pelos jardins da noite; só assim
nos restará a morte antes do fim.
O fruto do coração é pouco, semelhante à mágoa.
Olhar é uma página. Percorre-a a consciência de quando
não acontece nada. É preciso duvidar semeando limites
para ser-se ilimitado -- eis quando será legítimo enganar
os deuses. Maior que a montanha é
a gota de orvalho; maior que o sol é o movimento
da sombra. Os pássaros
não acontecem: vivem-se. É tarde
para inscrever o discurso da alegria
nas estruturas do ar?»

in O Livro da Noite

Saturday, October 27, 2007

Escrevias pela noite fora

«Escrevias pela noite fora. Olhava-te, olhava
o que ia ficando nas pausas entre cada
sorriso. Por ti mudei a razão das coisas,
faz de conta que não sei as coisas que não queres
que saiba, acabei por te pensar com crianças
à volta. Agora há prédios onde havia
laranjeiras e romãs no chão e as palavras
nem o sabem dizer, apenas apontam a rua
que foi comum, o quarto estreito. Um livro
é suficiente neste passeio. Quando não escreves
estás a ler e ao lado das árvores o silêncio
é maior. Decerto te digo o que penso
baixando a cabeça e tu respondes sempre
com a cabeça inclinada e o fumo suspenso
no ar. As verdades nunca se disseram. Queria
prender-te, tornar a perder-te, achar-te
assim por acaso no meu dia livre a meio
da semana. Mantêm-se as causas iguais
das pequenas alegrias, longe da alegria, a rotina
dos sorrisos vem de nenhum vício. Este abandono
custa. Porque estou contigo e me deixas
a tua imagem passa pelas noites sem sono,
está aqui a cadeira em que te sentaste
a escrever lendo. Pudesse eu propor-te
vida menos igual, outras iguais obrigações.
Havias de rir, sair à rua, comprar o jornal.»

Tuesday, October 23, 2007

Carta (Esboço)

"Lembro-me agora que tenho de marcar um
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma
das ocorrências da vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei que esse sítio podia
ser, até, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir até de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem à comunicação
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida, e cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio
ser, como se uma troca de almas fosse possivel
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e
me peças:«Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde,
isto é, a porta tinha-se fechado até outro
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos
para dizer uma ao outro: a confissão mais exacta, que
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos
encontrar; que há-de ser um dia azul, de verão, em que
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas,
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros."


in «Poesia Reunida», prefácio de Teresa Almeida, Dom Quixote, Lisboa, 2000

Wednesday, October 10, 2007

Não queiras saber de mim

"Não queiras saber de mim
Esta noite não estou cá
Quando a tristeza bate
Pior do que eu não há
Fico fora de combate
Como se chegasse ao fim
Fico abaixo do tapete
Afundado no serrim

Não queiras saber de mim
Porque eu estou que não me entendo
Dança tu que eu fico assim
Hoje não me recomendo

Mas tu pões esse vestido
E voas até ao topo
E fumas do meu cigarro
E bebes do meu copo
Mas nem isso faz sentido
Só agrava o meu estado
Quanto mais brilha a tua luz
Mais eu fico apagado

Dança tu que eu fico assim
Porque eu estou que não me entendo
Não queiras saber de mim
Hoje não me recomendo

Amanhã eu sei já passa
Mas agora estou assim
Hoje perdi toda a graça
Não queiras saber de mim."



Carlos Tê

Outro Testamento

"Quando eu morrer deitem-me nu à cova
Como uma libra ou uma raiz,
Dêem a minha roupa a uma mulher nova
Para o amante que a não quis.

Façam coisas bonitas por minha alma:
Espalhem moedas, rosas, figos.
Dando-me terra dura e calma,
Cortem as unhas aos meus amigos.

Quando eu morrer mandem embora os lírios:
Vou nu, não quero que me vejam
Assim puro e conciso entre círios vergados.
As rosas sim; estão acostumadas
A bem cair no que desejam:
Sejam as rosas toleradas.
Mas não me levem os cravos ásperos e quentes
Que minha Mulher me trouxe:
Ficam para o seu cabelo de viúva,
Ali, em vez da minha mão;
Ali, naquela cara doce...
Ficam para irritar a turba
E eu existir, para analfabetos, nessa correcta irritação.

Quando eu morrer e for chegando ao cemitério,
Acima da rampa,
Mandem um coveiro sério
Verificar, campa por campa
(Mas é batendo devagarinho
Só três pancadas em cada tampa,
E um só coveiro seguro chega),
Se os mortos têm licor de ausência
(Como nas pipas de uma adega
Se bate o tampo, a ver o vinho):
Se os mortos têm licor de ausência
Para bebermos de cova a cova,
Naturalmente, como quem prova
Da lavra da própria paciência.

Quando eu morrer. . .
Eu morro lá!
Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras,
Pois quando me comovo até o osso é sonoro.

Minha casa de sons com o morador na lua,
Esqueleto que deixo em linhas trabalhado:
Minha morte civil será uma cena de rua;
Palavras, terras onde moro,
Nunca vos deixarei.

Mas quando eu morrer, só por geometria,
Largando a vertical, ferida do ar,
Façam, à portuguesa, uma alegria para todos;
Distraiam as mulheres, que poderiam chorar;
Dêem vinho, beijos, flores, figos a rodos,
E levem-me - só horizonte - para o mar."


Vitorino Nemésio

Eu não sei quem te perdeu

Friday, October 05, 2007

DISCURSO (MUITO BREVE) SOBRE A CRIAÇÃO ARTÍSTICA



Para Jean-Claude Bertrand

Com que amor violentamos a folha deserta
cujas margens tacteiam a fronteira do sangue
cujas marcas viajam a superfície múltipla
das dunas
mão aberta
afagamos talvez a face o pleno espaço
na outra logo o fogo
o lápis
a memória
o gesto em vez do peso
a viagem
sem bússola do corpo
com que violência amamos o terreno
demarcado do espanto
sobre o húmus a força quente o espaço
a forma
a breve fala

Emanuel Félix
Paris, 1979.

Wednesday, October 03, 2007

Poema

"O sol fechou o dia
Sem mão nem chave;
A pouca luz que havia
Deu-a para uma ave.

Então a ave selou
Com seu sono seu ninho,
E a terra toda amou
na casa do passarinho.

Um ovo é como uma chave,
Mas só abre a vida às penas.
Apetece ser ave!
Ter as mágoas pequenas."

Sunday, September 30, 2007

Wednesday, September 26, 2007

Na Morte de Ruy Belo

Mario Viegas - Na ...


«Provavelmente já te encontrarás à vontade entre os anjos
E com esse sorriso onde a infância tomava sempre o comboio
Para as férias grandes, já terás feito amigos sem saudades dos
Dias onde passaste, quase anónimo e leve como o vento da praia
E a rapariga de Cambridge, que não deu por ti ou se deu
Era de Vila do Conde.
A morte, como a sede, sempre te foi próxima.
Sempre a vi a teu lado, em cada encontro nosso, ela ali estava,
Um pouco distraída, é certo, mas estava, como estava o mar
E a alegria ou a chuva nos versos da tua juventude.
Só não esperava tão cedo vê-la assim, na quarta página de um jornal
Trazido pelo vento, nesse Agosto de caldelas, no calor do meio dia;
Jornal onde em primeira pagina também vinha a promoção de um militar
A general ou talvez dois, ou três ou quatro, já não sei.
Isto de militares custa a distingui-los, feitos em forma como os galos de Barcelos Igualmente bravos, igualmente inúteis, passeando de cú melancólico pelas ruas
A saudade e a sífilis do império e tão inimigos todos daquela festa que
Em ti, em mim e nas dunas principia.
Consola-me, ao menos a ideia, de te haverem deixado em paz na morte.
Ninguém na Assembleia da República fingiu que te lera os versos.
Ninguém cheio de piedade por si próprio propôs funerais nacionais
Ou a título póstumo te quis fazer Visconde, Cavaleiro, Comendador,
Qualquer coisa assim, para estremar os campos.
Eles não deram por ti e a culpa é tua. Foste sempre discreto, até mesmo
Na morte. Não mandaste à merda o país nem nenhum ministro.
Não chateaste ninguém, nem sequer a tua lavadeira e foste a enterrar
Numa aldeia que não sei onde fica, mas seja onde for será a tua.
Agrada-me que tudo assim fosse.
E agora que começaste a fazer corpo com a terra,
A única evidência é crescer para o sol.»



Eugénio de Andrade

Tuesday, September 25, 2007

Dueto

Dueto - Chico Buar...


"Consta nos astros, nos signos, nos búzios
Eu li num anúncio, eu vi no espelho, tá lá no
evangelho, garantem os orixás
Serás o meu amor, serás a minha paz
Consta nos autos, nas bulas, nos dogmas
Eu fiz uma tese, eu li num tratado, está computado nos
dados oficiais
Serás o meu amor, serás a minha paz
Mas se a ciência provar o contrário, e se o calendário
nos contrariar
Mas se o destino insistir em nos separar
Danem-se os astros, os autos, os signos, os dogmas
Os búzios, as bulas, anúncios, tratados, ciganas,
projetos
Profetas, sinopses, espelhos, conselhos
Se dane o evangelho e todos os orixás
Serás o meu amor, serás, amor, a minha paz
Consta na pauta, no Karma, na carne, passou na novela
Está no seguro, pixaram no muro, mandei fazer um
cartaz
Serás o meu amor, serás a minha paz
Mas se a ciência provar o contrário, e se o calendário
nos contrariar
Mas se o destino insistir em nos separar
Danem-se os astros, os autos, os signos, os dogmas
Os búzios, as bulas, anúncios, tratados, ciganas,
projetos
Profetas, sinopses, espelhos, conselhos
Se dane o evangelho e todos os orixás
Serás o meu amor, serás, amor, a minha paz
Consta nos mapas, nos lábios, nos lápis
Consta nos Ovnis, no Pravda, na Vodka."

Sunday, September 09, 2007

Thursday, September 06, 2007

Mário Quintana

«A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,
Como se estivessem abertos diante de nós
todos os caminhos do mundo.
Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali...
Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando!»

A Verdadeira Arte de Viajar

«Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!»

Eu escrevi um poema triste

«na solidão na penumbra do amanhecer.
Via você na noite, nas estrelas, nos planetas,
nos mares, no brilho do sol e no anoitecer.
Via você no ontem , no hoje, no amanhã...
Mas não via você no momento.»


Que saudade...

Saudade

Tuesday, September 04, 2007

Sunday, September 02, 2007

Aniversário

"No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!..."


Álvaro de Campos

Friday, August 31, 2007

Poema podendo servir de posfácio

A Eduardo de Oliveira

"Ruas onde o perigo é evidente
braços verdes de práticas ocultas
cadáveres à tona de água
girassóis
e um corpo
um corpo para cortar as lâmpadas do dia
um corpo para descer uma paisagem de aves
para ir de manhã cedo e voltar muito tarde
rodeado de anões e de campos de lilases
um corpo para cobrir a tua ausência
como uma colcha
um talher
um perfume

isto ou o seu contrário, mas de certa maneira hiante
e com muita gente à volta a ver o que é
isto ou uma população de sessenta mil almas devorando almofadas escarlates a caminho do mar
e que chegam
ao crepúsculo
encostadas aos submarinos
isto ou um torso desalojado de um verso
e cuja morte é o orgulho de todos
ó pálida cidade construída
como uma febre entre dois patamares!
vamos distribuir ao domicílio
terra para encher candelabros
leitos de fumo para amantes erectos
tabuinhas com palavras interditas
– uma mulher para este que está quase a perder o gosto à vida – tome lá –
dois netos para essa velha aí no fim da fila – não temos mais –
saquear o museu dar um diadema ao mundo e depois obrigar a repor no mesmo sítio
e para ti e para mim, assentes num espaço útil,
veneno para entornar nos olhos do gigante

isto ou um rosto um rosto solitário como barco em demanda de vento calmo para a noite
se nós somos areia que se filtre
a um vento débil entre arbustos pintados
se um propósito deve atingir a sua margem como as correntes da terra náufragos e tempestade
se o homem das pensões e das hospedarias levanta a sua fronte de cratera molhada
se na rua o sol brilha como nunca
se por um minuto
vale a pena
esperar
isto ou a alegria igual à simples forma de um pulso
aceso entre a folhagem das mais altas lâmpadas
isto ou a alegria dita o avião de cartas
entrada pela janela saída pelo telhado

ah mas então a pirâmide existe?
ah mas e então a pirâmide diz coisas?
então a pirâmide é o segredo de cada um com o mundo?

sim meu amor a pirâmide existe
a pirâmide diz muitíssimas coisas
a pirâmide é a arte de bailar em silêncio

e em todo o caso

há praças onde esculpir um lírio
zonas subtis de propagação do azul
gestos sem dono barcos sob as flores
uma canção para ouvir-te chegar."

Wednesday, August 29, 2007

Viver sempre também cansa

«"Viver sempre também cansa!
O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinza, negro, quase verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.
Tudo é igual, mecânico e exacto.
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.
E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...
E obrigam-me a viver até à Morte!
Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois, achando tudo mais novo?
Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.
Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
"Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela."
E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo.»

Resíduo

Os Estatutos do Homem



Thiago de Mello (Brasil)

Monday, August 27, 2007

As palavras que te envio são interditas

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.

Saturday, August 25, 2007

What if

What if there was no lie
Nothing wrong, nothing right
What if there was no time
And no reason, or rhyme
What if you should decide
That you don't want me there by your side
That you don't want me there in your life
What if I got it wrong
And no poem or song
Could put right what I got wrong
Or make you feel I belong

What if you should decide
That you don't want me there by your side
That you don't want me there in your life

Ooh ooh-ooh, that's right
Let's take a breath, jump over the side
Ooh ooh-ooh, that's right
How can you know it, if you don't even try
Ooh ooh-ooh, that's right

Every step that you take
Could be your biggest mistake
It could bend or it could break
That's the risk that you take

What if you should decide
That you don't want me there in your life
That you don't want me there by your side

Ooh ooh-ooh, that's right
Let's take a breath, jump over the side
Ooh ooh-ooh, that's right
How can you know when you don't even try
Ooh ooh-ooh, that's right

Oh - Ooh ooh-ooh, that's right,
Let's take a breath, jump over the side.
Ooh ooh-ooh, that's right,
You know that darkness always turns into light.
Ooh-ooh, that's right

Coldplay

Sunday, August 12, 2007

Pessoas

Há pessoas que são como instituições.
Quando, de repente nos damos conta,
já levamos a multa para casa
com pagamento obrigatório
dali a dez dias.
Há pessoas com cara de guiché,
ar de recibo verde e
voz com tom de carimbo.
Há pessoas que são como eléctricos
e, quando damos por isso,
já elas correm sempre em frente
nos seus carris de todos os dias.

Há pessoas que são como barris de vinho;
não têm furos, não deixam escapar nada
e quando, num ápice, deixamos escapar um sorriso,
já elas estão cilindradas por medos e fobias,
que por muito que tentemos não conseguimos
descobrir quais são.
Há pessoas que trazem nos dentes impressos
como autocolantes senhas numeradas para
manter ordens que, mesmo desordenadas,
devem apitar no ecrã e parecer muito direitas.
Há pessoas que nos levam da vida como uma onda,
que vem só às vezes; pessoas que se deixam
embrulhar em laços e parecem
nunca mais querer endireitar-se.

Há pessoas que são como balcões
encerrados para balanço,
que cegam como nós dados nos
cordões dos sapatos,
que ardem como sumo de limão nos lábios
e que se evaporam como o fumo de um chá quente.
Há pessoas que lembram ovos cozidos e outras
que lembram músicas e letras.
Há pessoas que usam chapéus de palha
e soltam gargalhadas como se fossem
de rir as outras pessoas.

Há pessoas que são como feiras de carros usados;
pessoas que parecem de colar;
pessoas que lembram filetes de pescada
deitados em travessas de inox;
pessoas que são de decalcar.
Há pessoas que são tantas pessoas
que todas juntas parecem uma pessoa só.

Maria Amaro

Thursday, August 09, 2007

Navio de Sal

«Quando eu era pequeno, vinha o navio de sal,
Era um acontecimento!
E meu tio António Machado ia sempre ao areal
Com o seu óculo de alcance desencanudado a barlavento.
Era um iate cheio de cordas e de velas,
Chamado Santo Amaro, o Veloz ou o Diligente,
E, como trazia o sal, que é o sabor das panelas,
Era esperado tal qual como se fosse um ausente.
Na barra do horizonte era um ponto sozinho,
Mas crescia no vento a sua vela crua,
E o sol, ao morrer, tingia-lhe de vinho
A proa que vestia a pau a vaga nua.
Ali vinha, do Alto, sem sextante nem erro,
Enchendo devagar as previstas derrotas,
E plantava no fundo a sua raiz de ferro
Fazendo abrir no céu como flores as gaivotas.
As raparigas sãs da ribeira do mar,
Que traziam na pele um aroma silvestre,
Punham os olhos muito compridos, a cismar,
Nas cordas que secavam as roupas íntimas do Mestre.
Os pescadores mediam com a linha das pestanas
O tamanho do Audaz, a sua popa alceira:
Nunca tinha arribado àquelas praias insulanas
Tanto pano de verga, tanto oleado, tanta madeira!
Por isso a Vila, abrindo nas rochas duras
A branca humanidade das suas nocturnas casas,
Se encostava ao bater daquelas velas escuras
Como o corpo de um pássaro se deixa levar pelas asas.
(...)»



Vitorino Nemésio

O Bicho Harmonioso (1938)

Sunday, July 29, 2007

Thursday, July 26, 2007

If I could tell you…

«Time will say nothing but I told you so,
Time only knows the price we have to pay;
If I could tell you I would let you know.
If we should weep when clowns put on their show,
If we should stumble when musicians play,
Time will say nothing but I told you so.
There are no fortunes to be told, although,
Because I love you more than I can say,
If I could tell you I would let you know.
The winds must come from somewhere when the blow,
There must be reasons why the leaves decay;
Time will say nothing but I told you so.
Perhaps the roses really want to grow,
The vision seriously intends to stay;
If I could tell you I would let you know.
Suppose the lions all get up and go,
And all the brooks and soldiers run away;
Will Time say nothing but I told you so?
If I could tell you I would let you know.»


Wystan Hugh Auden

Monday, July 23, 2007

"espelho, és a terra onde as raízes rebentam de mistérios.
repetes as perguntas que te faço, porquê?, repetes
os olhares sem fim das coisas paradas, repetes o meu olhar.
espelho, és a parede e a pele cansada, és um silêncio a morrer a noite,
és o que ninguém quer, a verdade mais triste e cansada por dentro.
repetes as perguntas que te faço, porquê?, repetes
a desgraça, a miséria e o desespero.
espelho, quis conhecer-te e perdi-me de ti."


José Luís Peixoto
"A Criança em Ruínas", edições Quasi

Friday, July 20, 2007

Dormes, Lázaro?



"Guerra de nervos
de terra
de classe
de raça
de ruínas
de ferro
de lacaios
de insígnias
de vento
de vento
de vento
de linhas de ar, de mar, de foices
de fronteiras, de desgraças que se enredam
que nos enredam
sob o pilar, sob o desprezo
sob ontem, sob os destroços da estátua tombada
sob enormes painéis com a palavra «veto»
prisioneiros do esterco
sob amanhã rins quebrados, sob amanhã
sob amanhã
milhões e milhões de homens entretanto
entram na morte
sem mesmo um grito
milhões e milhões
como uma perna gela o termómetro
mas uma voz de extrema estridência…
e conduzidos do Norte para o Sul milhões e milhões
entram na morte.

Dormes, Lázaro?
Morrem, Lázaro
Eles morrem
e não há mortalha
não há Maria nem Marta
muitas vezes nem há sequer o cadáver
Como um louco ri abrindo uma ostra
gritando eu pergunto
pergunto
insensatamente pergunto
se pelo teu lado, Lázaro
se pelo teu lado, agora
alguma coisa aprendeste!"

Thursday, July 19, 2007

Música



Foto: JM

SONGBIRD

O Livro dos Amantes

IX

«Pusemos tanto azul nessa distância
ancorada em incerta claridade
e ficamos nas paredes do vento
a escorrer para tudo o que ele invade.

Pusemos tantas flores nas horas breves
que secam folhas nas árvores dos dedos.
E ficamos cingidos nas estátuas
a morder-nos na carne dum segredo.»

Sunday, July 15, 2007

Surdo, Subterrâneo Rio

"Surdo, subterrâneo rio de palavras
me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o próprio lodo.

Correr do tempo ou só rumor do frio
onde o amor se perde e a razão de amar
--- surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?"

Saturday, July 07, 2007

Wednesday, July 04, 2007

Homens que são como lugares mal situados

«Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem
Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas
Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas
Homens que são como danos irreparáveis
Homens que São sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar
Homens que trabalham sob a lâmpada
Da morte
Que escavam nessa luz para ver quem ilumina
A fonte dos seus dias
Homens muito dobrados pelo pensamento
Que vêm devagar como quem corre
As persianas
Para ver no escuro a primeira nascente
Homens que escavam dia após dia o pensamento
Que trabalham na sombra da copa cerebral
Que podam a pedra da loucura quando esmagam as pupilas
Homens todos brancos que abrem a cabeça
À procura dessa pedra definida
Homens de cabeça aberta exposta ao pensamento
Livre. Que vêm devagar abrir
Um lugar onde amanheça.
Homens que se sentam para ver uma manhã
Que escavam um lugar
Para a saída.»

Wednesday, June 27, 2007

Eco

«Vagas são as promessas e ao longe,
muito longe, uma estrela.

Cruel foi sempre o seu fulgor:
sonâmbulas cidades, ruas íngremes,
passos que dei sem onde.

Era esse o meu reino, e era talvez essa
a voz da própria lua.
Aí ficou gravada a minha sede.
Aí deixei que o fogo me beijasse
pela primeira vez.

Agora tenho as mãos vazias,
regresso e sei que nada me pertence
- nenhum gesto do céu ou da terra.
Apenas o rumor de breves sombras
e um nome já incerto que por mágoa
não consigo esquecer.»

Fernando Pinto do Amaral

Sunday, June 17, 2007

O dia ordena os cântaros um a um em filas vivas

"O dia ordena os cântaros um a um em filas vivas.
A noite cerra-lhes os corações que sorviam
o caos
pelas aortas
de argila. Flancos contra flancos.
O tempo só existe por estes corpos selados.
E o azeite repousa. O vinho ensombra-se.
O mel amadurece com a voltagem de uma jóia
onde mergulha a lua.
Se alguém se fecha com a noite por cima.
Estou cheio desta noite, deste sono, desta riqueza
côncava,
arrefecida.
Ordena a luz o que o escuro tranca, o sonho
atado ao sono numa imagem concêntrica
radiando
dentro. A imagem diurna ordena
em filas que respiram as palavras
profundas, as crateras,
os cântaros
- profundamente.
As palavras encostadas ao papel. E o barro
suspira. O peso dessa
vida insondável: vinho,
azeite, mel – o caos que se transforma em número.
A imagem multiplica a consciência.
A jóia sazonada contra a morte.
Uma a uma, as coisas do mundo, as noites desarrumadas,
as mãos que as arrumam
entre chama e sono, as bilhas uma a uma do tesouro,
uma a uma
as palavras contra o papel profundo que suspira
- bilhas profundas na casa mais profunda
ainda."


Herberto Helder, in “Última Ciência’ 4.13”,
Assírio & Alvim 1988

Thursday, June 07, 2007

A Meu Favor

«A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer.

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça

A meu favor tenho uma rua e transe
Um alto incêndio em nome de nós todos.»
Alexandre O´neill

Friday, May 11, 2007

FIVE O'CLOCK TEAR

"Coisa tão triste aqui esta mulher
com seus dedos pousados no deserto dos joelhos
com seus olhos voando devagar sobre a mesa
para pousar no talher
Coisa mais triste o seu vaivém macio
p'ra não amachucar uma invisível flora
que cresce na penumbra
dos velhos corredores desta casa onde mora

Que triste o seu entrar de novo nesta sala
que triste a sua chávena
e o gesto de pegá-la

E que triste e que triste a cadeira amarela
de onde se ergue um sossego um sossego infinito
que é apenas de vê-la
e por isso esquisito

E que tristes de súbito os seus pés nos sapatos
seus seios seus cabelos o seu corpo inclinado
o álbum a mesinha as manchas dos retratos

E que infinitamente triste triste
o selo do silêncio
do silêncio colado ao papel das paredes
da sala digo cela
em que comigo a vedes

Mas que infinitamente ainda mais triste triste
a chávena pousada
e o olhar confortando uma flor já esquecida
do sol
do ar
lá de fora
(da vida)
numa jarra parada."

Emanuel Felix, A Palavra O Açoite (1977)

Wednesday, May 09, 2007

Luta

«Um contra o mundo, é pouco.
Mesmo que seja louco,
É muito pouco ainda.
Mas que pode fazer o homem que endoidece
E se esquece
De medir o poder do seu tamanho?
Ah, se houvesse um fotógrafo no céu
Que filmasse
Uma aventura assim, ridícula e perfeita!
D.Quixote sozinho
A combater as velas do moinho
Que mói, ronceiro, a última colheita.»


Miguel Torga

Thursday, May 03, 2007

Trespasse

«Quem tiver sonhos, guarde-os bem fechados
— com naftalina — num baú inútil.
Por mim abdico desses vãos cuidados.
Deixai-me ser liricamente fútil!

Estou resolvido. Vou abrir falência.
(Bandeira rubra desfraldada ao vento:
"Hoje, leilão!") Liquida-se a existência
— por retirada para o esquecimento ... »


Daniel Filipe

Livro de Horas



«Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão em leme da nau
Nesta deriva em que vou.

Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.

Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!»

Tuesday, May 01, 2007

Para Ninguém

« Há uma lenta coesão de grão a grão na casa do silêncio.
Soergue-se um barco, já não na água crispada violenta.
Uma fenda abriu-se entre as ervas da sede
na diagonal do gérmen
e o sopro libertou-se em direcção ao mar.
É pra ninguém que escrevo as vogais lavadas pelo vento
e limpo a minha morada para os seus olhos de silêncio.»

António Ramos Rosa

Wednesday, April 25, 2007

Meu amor, meu amor (Meu Limão de Amargura)

«Meu amor, meu amor
Meu corpo em movimento
Minha voz à procura
Do seu próprio Lamento
Meu Limão de amargura
Meu punhal a crescer;
Nós parámos o tempo
Não sabemos morrer
E nascemos, nascemos
Do nosso entristecer.

Meu amor, meu amor
Meu pássaro cinzento
A chorar a lonjura
Do nosso afastamento

Meu amor, meu amor
Meu nó de sofrimento
Minhá mó de ternura
Minha nau de tormento:
Este mar não tem cura
Este céu não tem ar
Nós parámos o vento
Não sabemos nadar
E morremos, morremos
Devagar, devagar.»


Ary dos Santos

Tuesday, April 24, 2007

Saturday, April 14, 2007

Wednesday, April 04, 2007

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...


Álvaro de Campos

Monday, April 02, 2007

Boi da Paciência

"Noite dos limites e das esquinas nos ombros
noite por de mais aguentada com filosofia a mais
que faz o boi da paciência aqui?
que fazemos nós aqui?
este espectáculo que não vem anunciado
todos os dias cumprido com as leis do diabo
todos os dias metido pelos olhos adentro
numa evidência que nos cega
até quando?
Era tempo de começar a fazer qualquer coisa
os meus nervos estão presos na encruzilhada
e o meu corpo não é mais que uma cela ambulante
e a minha vida não é mais que um teorema
por demais sabido!
Na pobreza do meu caderno
como inscrever este céu que suspeito
como amortecer um pouco a vertigem desta órbita
e todo o entusiasmo destas mãos de universo
cuja carícia é um deslizarr de estrelas?
Há uma casa que me espera
para uma festa de irmãos
há toda esta noite a negar que me esperam
e estes rostos de insónia
e o martelar opaco num muro de papel
e o arranhar persistente duma pena implacável
e a surpresa subornada pela rotina
e o muro destrutível destruindo as nossas vidas
e o marcar passo à frente deste muro
e a força que fazemos no silêncio para derrubar o muro
até quando? até quando?
Teoricamente livre para navegar entre estrelas
minha vida tem limites assassinos
Supliquei aos meus companheiros.Mas fuzilem-me!
Inventei um deus só para que me matasse
Muralhei-me de amor
e o amor desabrigou-me
Escrevi cartas a minha mãe desesperadas
colori mitos e distribuí-me em segredo
e ao fim ao cabo
recomeçar
Mas estou cansado de recomeçar!
Quereria gritar:Dêem árvores para um novo
recomeço!
Aproximem-me a natureza até que a cheire!
Desertem-me este quarto onde me perco!
Deixem-me livre por um momento em qualquer parte
para uma meditação mais natural e fecunda
que me limpe o sangue!
Recomeçar!
Mas originalmente com uma nova respiração
que me limpe o sangue deste polvo de detritos
que eu sinta os pulmões com duas velas pandas
e que eu diga em nome dos mortos e dos vivos
em nome do sofrimento e da felicidade
em nome dos animais e dos utensílios criadores
em nome de todas as vidas sacrificadas
em nome dos sonhos
em nome das colheitas em nome das raízes
em nome dos países em nome das crianças
em nome da paz
que a vida vale a pena que ela é a nossa medida
que a vida é uma vitória que se constrói todos os dias
que o reino da bondade dos olhos dos poetas
vai começar na terra sobre o horror e a miséria
que o nosso coração se deve engrandecer
por ser tamanho de todas as esperanças
e tão claro como os olhos das crianças
e tão pequenino que uma delas possa brincar com ele
Mas o homenzinho diário recomeça
no seu giro de desencontros
A fadiga substituiu-lhe o coração
As cores da inércia giram-lhe nos olhos
Um quarto de aluguer
Como perservar este amor
ostentando-o na sombra
Somos colegas forçados
Os mais simples são os melhores
nos seus limites conservam a humanidade
Mas este sedento lúcido e implacável
familiar do absurdo que o envolve
como uma vida de relógio a funcionar
e um mapa da terra com rios verdadeiros
correndo-lhe na cabeça
como poderá suportar viver na contenção total
na recusa permanente a este absurdo vivo?
Ó boi da paciência que fazes tu aqui?
Quis tornar-te amável ser teu familiar
fabriquei projectos com teus cornos
lambi o teu focinho acariciei-te em vão
A tua marcha lenta enerva-me e satura-me
As constelações são mais rápidas nos céus
a terra gira com um ritmo mais verde que o teu passo
Lá fora os homens caminham realmente
Há tanta coisa que eu ignoro
e é tão irremediável este tempo perdido!
Ó boi da paciência sê meu amigo!"


António Ramos Rosa, Viagem através duma Nebulosa(1960)

Friday, March 30, 2007

Desfecho

Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu pudesse combater
O terror de te ver
Em toda a parte.)
Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente...
E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.
Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.



Miguel Torga, Antologia Poética, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999

CARTA DA INFÂNCIA

"Amigo Luar:
Estou fechado no quarto escuro
e tenho chorado muito.
Quando choro lá fora
ainda posso ver as lágrimas caírem na palma das
minhas mãos e brincar com elas ao orvalho
nas flores pela manhã.
Mas aqui é tudo por demais escuro
e eu nem sequer tenho duas estrelas nos meus olhos.
Lembro-me das noites em que me fazem deitar tão
cedo e te oiço bater, chamar e bater, na fresta
da minha janela.
Pelo muito que te tenho perdido enquanto durmo
vem agora,
no bico dos pés
para que eles te não sintam lá dentro,
brincar comigo aos presos no segredo
quando se abre a porta de ferro e a luz diz:
bons dias, amigo."


Carlos de Oliveira , Trabalho Poético, Lisboa, Sá da Costa, 1998 (3ª ed.)

Monday, March 26, 2007

Carta (excerto)

"E se a noite, estiver fria, abriga-te nessa entrada onde os cães
se recolhem, dando o calor do seu bafo aos vagabundos. Mas
se os cães te rosnarem, não te sentes junto deles, limita-te a roubar-
-lhes um pouco de calor, que poderás levar contigo para a rua,
onde terás de tomar cuidado para não escorregar no
gelo. Esse, podes pensar, é o inconveniente da noite; mas
enganaste. À noite, o frio é mais suportável do que durante
o dia, porque da noite não se espera outra coisa; enquanto que
o sol, caindo sobre o teu corpo com o brilho glacial do
Inverno, entrará por ti dentro, até à alma, obrigando-te
a olhar à tua volta, e a perguntar por que razão o mundo
está ao contrário. O problema é que não é a Terra que voltou
a parar, para que o Sol começasse a andar à sua volta; tu
pelo contrário, é que estás imóvel, incapaz de efectuar
o teu movimento de rotação em torno da vida, para
que ela te aqueça com o seu impulso. Então, não te
esqueças de que a noite pode ser a tua última hipótese
de sobrevivência, sobretudo se a névoa começar a
subir dos passeios, e a abraçar-te com o sopro húmido
dessa terra que te deseja, e que terás de pisar, saindo
do alcatrão e avançando pelos canteiros, onde sentirás
que os teus pés se enterram num colchão de ervas e de
húmus. É possível que algum cão te siga, como se
tivesse adoptado a tua solidão. Não o afastes, pelo menos
enquanto a noite durar, porque também para os cães
a noite pode ser fria. Esse é o cão que fala contigo
mesmo que não ladre: limita-te a olhá-lo, aproveitando
a luz fosca de um candeeiro; e talvez encontres, no
mais fundo dos teus olhos, a dor que te atormentava,
para que vejas que ela saiu de dentro de ti e reside
agora no corpo desse animal que não irás alimentar,
a quem não fazes nenhuma festa, e que te vai deixar
na próxima esquina, levando nele a dor que lhe passaste."


Nuno Júdice

Wednesday, March 21, 2007

Poesia

Quando as palavras são poesia

Fantástico!

A Defesa do Poeta

Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto


Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim


Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes


Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei


Senhores professores que puseste
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição


Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis


Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além


Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs na ordem ?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem ?


Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa


Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho !
a poesia é para comer.


Natália Correia

Sunday, March 18, 2007

Por cá poucas novidades. Caímos todos há pouco como flores pisadas pela mão do vento.
E pronto. Foi mais esta vez.

Friday, March 16, 2007

Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não

Porque os outros usam a virtude

Para comprar o que não tem perdão.

Porque os outros têm medo mas tu não.



Porque os outros são os túmulos caiados

Onde germina calada a podridão.

Porque os outros se calam mas tu não.



Porque os outros se compram e se vendem

E os seus gestos dão sempre dividendo.

Porque os outros são hábeis mas tu não.



Porque os outros vão à sombra dos abrigos

E tu vais de mãos dadas com os perigos.

Porque os outros calculam mas tu não.

Sunday, March 11, 2007

Saturday, March 03, 2007

Quando o amor morrer

«Quando o amor morrer dentro de ti,
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes o abrigo
E o nocturno calor que se debruça
Sobre as faces brilhantes de soluços.
E se ninguém vier, ergue o sudário
Que mil saudosas lágrimas velaram;
Desfralda na tua alma o inventário
Do templo onde a vida ora de bruços,
A Deus e aos sonhos que gelaram.»

A vazia sandália de S.Francisco

«A gratidão da macieira e a amnésia do gato
nunca pautaram o curso dos meus dias.
“Fiquem onde estão!”,
foi a minha ordem para a macieira e para o gato,
ainda bem exteriores ao meu fraco por eles.

Salvei-os (e salvei-me!) de uma fábula
cuja moral necessariamente devia ser eu, o parlante
amigo de macieiras e conhecido de gatos.

Dá um certo desconforto malbaratar assim amigos
em dois reinos da natureza.
Mas também dá liberdade.

Há uma gente que desponta do outro lado do vale.
Está a correr para cá.
São os meus semelhantes.
Com eles vou desentender-me (mais que certo!),
mas a ideia que deles faço
é ainda um laço.

Repousem em paz as macieiras e os gatos.»

Tuesday, February 13, 2007

Citação (importante)

"Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era
preciso chamá-lo sem voz - difundia uma colorida
multiplicação de mãos, e aparecia depois todo nu
escutando-se a si mesmo, e fazia de estátua durante
um parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera um crime,
os jornais diziam, ele vinha em estado completo
de fotografia embriagada, descobria-se sangue,
a vítima caminhava com uma pêra na mão, a boca estava
impressa na doçura intransponível da pêra, e depois
já se não sabia o que fazer, ele era belo muito,
daquela espécie de beleza repentina e urgente,
inspirava a mais terrível acção do louvor,
mas vinha comer às nossas mãos,
e bastava que tivéssemos muito silêncio para isso,
e então os dias cruzavam-se uns pelos outros
e no meio habitava uma montanha intensa,
e mais tarde às noites trocavam-se e no meio
o que existia agora era uma plantação de espelhos,
o Amor aparecia e desaparecia em todos eles,
e tínhamos de ficar imóveis e sem compreender,
porque ele era uma criança assassina e
andava pela terra com as suas camisas
brancas abertas, as suas camisas negras
e vermelhas todas desabotoadas."


Herberto Helder, Poesia Toda

Friday, February 09, 2007

Memórias de um Beijo (Lembras-me uma Marcha de Lisboa)

"Lembras-me uma marcha de lisboa
Num desfile singular,
Quem disse
Que há horas e momentos p'ra se amar

Lembras-me uma enchente de maré
Com uma calma matinal
Quem foi
quem disse
Que o mar dos olhos também sabe a sal

As memórias são
Como livros escondidos no pó
As lembranças são
Os sorrisos que queremos rever, devagar

Queria viver tudo numa noite
sem perder a procurar
O tempo, ou o espaço
Que é indiferente p'ra poder sonhar

As memórias são
Como livros escondidos no pó
As lembranças são
Os sorrisos que queremos rever, devagar

Quem foi que provocou vontades
e atiçou as tempestades
e amarrou o barco ao cais
Quem foi, que matou o desejo
E arrancou o lábio ao beijo
E amainou os vendavais

As memórias são
Como livros escondidos no pó
As lembranças são
Os sorrisos que queremos rever, devagar
devagar"


Luís Represas

Friday, February 02, 2007

Outono II

Sem vento, a minha voz secou
aqui, neste parque de cedros quietos.
Tudo é como ontem era, mas a minha
voz, na minha face, calou-se,
porque só o vento me trazia a fala,
vinda de algures, com notícias de alguém,
indo para além, para outros ouvidos, num país.



Fiama Hasse Pais Brandão, in "As Fábulas" , 2002

Não sei quantos seremos, mas qu'importa?!
um só que fosse e já valia a pena.
Aqui,no mundo, alguém que se condena
A não ser conivente
Na farsa do presente
Posta em cena!

Não podemos mudar a hora da chegada,
Nem talvez a mais certa,
A da partida.
Mas podemos fazer a descoberta
Do que presta
E não presta
Nesta vida.

E o que não presta é isto,esta mentira
Quotidiana.
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste.


Miguel Torga: "Camara Ardente", 1962

Wednesday, January 31, 2007

Eternamente Tu

"O tempo não sabe nada, o tempo não tem razão
O tempo nunca existiu, o tempo é nossa invenção
Se abandonarmos as horas não nos sentimos sós
Meu amor, o tempo somos nós

O espaço tem o volume da imaginação
Além do nosso horizonte existe outra dimensão
O espaço foi construído sem princípio nem fim
Meu amor, huuum, tu cabes dentro de mim

O meu tesouro és tu
Eternamente tu
Não há passos divergentes para quem se quer
Encontrar

A nossa história começa na total escuridão
Onde o mistério ultrapassa a nossa compreensão
A nossa história é o esforço para alcançar a luz
Meu amor, o impossível seduz

O meu tesouro és tu
Eternamente tu
Não há passos divergentes para quem se quer
Encontrar

O meu tesouro és tu
Eternamente tu
Eternamente tu"


Jorge Palma

2 Anos

Tuesday, January 30, 2007

A CABEÇA DE ARCAIFAZ

"Localização fonética:
a) A cabeça: onde cabe a eça. Popª.:
cabe a eça agora.
b) de Arcaifaz (sismo): o ar (que)
cai, faz (produz) sismo. Faz sismo:
o ar cai. Caindo o ar, fica o caifascismo,
o que dá cai, dá sismo, e retira o ar que
caiu. Por isso se diz que não há ar onde
há alguém que faz sismo., podendo no
entanto sufixismar-se o prefixo, o que
dará o CAIFAZCISMAÇÃO, sublimação da cisma de Caifaz."


Mário Cesariny de Vasconcelos, Poesia, 1961

Sunday, January 28, 2007

Amor

Amor, amor, amor, como não amam
Os que de amor o amor de amar não sabem,
Como não amam se de amor não pensam
Os que de amar o amor de amar não gozam.
Amor, amor, nenhum amor, nenhum
Em vez do sempre amar que o gesto prende
O olhar ao corpo que perpassa amante
E não será de amor se outro não for
Que novamente passe como amor que é novo.
Não se ama o que se tem nem se deseja
O que não temos nesse amor que amamos,
Mas só amamos quando amamos o acto
Em que de amor o amor de amar se cumpre.
Amor, amor, nem antes nem depois,
Amor que não possui, amor que não se dá,
Amor que dura apenas sem palavras tudo
O que no sexo é o sexo só por si amado.
Amor de amor de amar de amor tranquilamente
O oleoso repetir das carnes que se roçam
Até ao instante em que paradas tremem
De ansioso terminar o amor que recomeça.
Amor, amor, amor, como não amam
Os que de amar o amor de amar o amor não amam.
voltar.


Jorge de Sena

Casa