Friday, March 30, 2007

Desfecho

Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu pudesse combater
O terror de te ver
Em toda a parte.)
Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente...
E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.
Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.



Miguel Torga, Antologia Poética, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999

CARTA DA INFÂNCIA

"Amigo Luar:
Estou fechado no quarto escuro
e tenho chorado muito.
Quando choro lá fora
ainda posso ver as lágrimas caírem na palma das
minhas mãos e brincar com elas ao orvalho
nas flores pela manhã.
Mas aqui é tudo por demais escuro
e eu nem sequer tenho duas estrelas nos meus olhos.
Lembro-me das noites em que me fazem deitar tão
cedo e te oiço bater, chamar e bater, na fresta
da minha janela.
Pelo muito que te tenho perdido enquanto durmo
vem agora,
no bico dos pés
para que eles te não sintam lá dentro,
brincar comigo aos presos no segredo
quando se abre a porta de ferro e a luz diz:
bons dias, amigo."


Carlos de Oliveira , Trabalho Poético, Lisboa, Sá da Costa, 1998 (3ª ed.)

Monday, March 26, 2007

Carta (excerto)

"E se a noite, estiver fria, abriga-te nessa entrada onde os cães
se recolhem, dando o calor do seu bafo aos vagabundos. Mas
se os cães te rosnarem, não te sentes junto deles, limita-te a roubar-
-lhes um pouco de calor, que poderás levar contigo para a rua,
onde terás de tomar cuidado para não escorregar no
gelo. Esse, podes pensar, é o inconveniente da noite; mas
enganaste. À noite, o frio é mais suportável do que durante
o dia, porque da noite não se espera outra coisa; enquanto que
o sol, caindo sobre o teu corpo com o brilho glacial do
Inverno, entrará por ti dentro, até à alma, obrigando-te
a olhar à tua volta, e a perguntar por que razão o mundo
está ao contrário. O problema é que não é a Terra que voltou
a parar, para que o Sol começasse a andar à sua volta; tu
pelo contrário, é que estás imóvel, incapaz de efectuar
o teu movimento de rotação em torno da vida, para
que ela te aqueça com o seu impulso. Então, não te
esqueças de que a noite pode ser a tua última hipótese
de sobrevivência, sobretudo se a névoa começar a
subir dos passeios, e a abraçar-te com o sopro húmido
dessa terra que te deseja, e que terás de pisar, saindo
do alcatrão e avançando pelos canteiros, onde sentirás
que os teus pés se enterram num colchão de ervas e de
húmus. É possível que algum cão te siga, como se
tivesse adoptado a tua solidão. Não o afastes, pelo menos
enquanto a noite durar, porque também para os cães
a noite pode ser fria. Esse é o cão que fala contigo
mesmo que não ladre: limita-te a olhá-lo, aproveitando
a luz fosca de um candeeiro; e talvez encontres, no
mais fundo dos teus olhos, a dor que te atormentava,
para que vejas que ela saiu de dentro de ti e reside
agora no corpo desse animal que não irás alimentar,
a quem não fazes nenhuma festa, e que te vai deixar
na próxima esquina, levando nele a dor que lhe passaste."


Nuno Júdice